Especialistas em Relações Internacionais explicaram o cenário que levou à tentativa fracassada de golpe na Bolívia.
Tanques e soldados do Exército invadem a
entrada do palácio presidencial em La Paz, na Bolívia. Roteiro e imagens
lembram as décadas de 1960 e 1970, quando ditaduras militares se espalharam
pela América do Sul. Mas a cena ocorreu nesta quarta-feira (26) no país
sul-americano. Acontecimento surpreendente ou desfecho para um governo em
crise? Especialistas em Relações Internacionais explicaram o cenário que levou à tentativa
fracassada de golpe na Bolívia.m Em primeiro lugar, existe um entendimento
comum de que o episódio desta quarta-feira (26) foi muito mais um ato isolado
do general Juan José Zúñiga do que um movimento bem planejado, com apoio de
diferentes forças sociais. O general foi demitido nesta terça-feira (25)
do cargo de comandante do Exército, depois de ameaçar o ex-presidente Evo
Morales. “O general teve um erro de cálculo político. Achou que receberia algum
respaldo ao ameaçar o Evo Morales. Mas o atual presidente boliviano bancou a
aposta e tirou o general do comando do Exército. E aí ele se viu numa situação
de isolamento e tentou o golpe de uma maneira muito improvisada, sem
participação de outras lideranças das Forças Armadas. E foi importante ver que
ele não teve apoio significativo de nenhum grupo social do país”, diz Maurício
Santoro, cientista político e professor de Relações Internacionais. “O Evo
Morales já convocou uma greve geral e tem os movimentos sindicais muito
alinhados com ele. O próprio presidente Luis Arce também veio a público para
pedir que a sociedade boliviana se junte contra esse golpe. E setores da
oposição se colocaram contra o golpe. A própria Jeanine Añez, que já foi
presidenta e opositora do Evo, disse que não aceita o que aconteceu. O Luís
Camacho, importante líder contra o Evo Morales em 2019 falou que não aceita
também. Então, esse movimento de golpe parece isolado. Muito mais uma tentativa
do Exército e do próprio Zúñiga de demonstrar poder, do que de fato querer
impor um novo governo”, diz Arthur Murta, professor de Relações Internacionais
da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. O general Zúñiga foi
preso após liderar a tentativa de golpe. Em segundo lugar, o ato do
general pode ser entendido a partir de problemas mais estruturais que o país
enfrenta, como a dimensão econômica. “A Bolívia está vivendo uma situação
econômica muito difícil. O principal setor é o de gás natural, que está
enfrentando uma série de problemas. Isso levou a uma queda nas exportações, e
as reservas internacionais da Bolívia estão muito pequenas, em torno de US$ 3
bilhões. O que é nada para as necessidades de um país. Para comparar, o Brasil
que tem uma situação bastante confortável em termos de reservas tem hoje mais
de US$ 350 bilhões. Isso significa que a Bolívia está com muita dificuldade de
importar mesmo produtos básicos para o dia a dia: alimentos, remédios,
combustíveis”, diz Maurício Santoro. “Os países andinos estão baseados no
extrativismo pesado e com os preços nas alturas. O Estado quer se apropriar de
uma parte desse excedente econômico. E grupos nacionais e multinacionais querem
pegar absolutamente tudo. Mas não é como Salvador Allende. na década de 70, que
estava mantendo a companhia do cobre sob o controle, ou estatizando empresas.
Agora é o contrário, é uma administração que quer se apropriar de parte desses
excedentes para a realização de políticas públicas. A classe dominante e as
multinacionais nem isso topam. Então nós ficamos sempre numa situação limite
entre o Estado e essas forças sociais”, explica o professor do Departamento de
Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC), Nildo Ouriques. Do ponto de vista das disputas políticas, as tensões
entre diferentes líderes e partidos do país contribuem para aumentar os riscos
à democracia. “O componente político dessa crise é o fato de que no ano que vem
a Bolívia vai ter eleições presidenciais e o general que tentou o golpe hoje
disse ontem que se o Evo Morales se apresentar como candidato à presidência, as
Forças Armadas iriam intervir e prender o Evo. Há poucos anos aconteceu uma
crise política semelhante na Bolívia, em 2019, que terminou com a deposição do
Evo e a intervenção dos militares. Então, é uma ferida que ainda está aberta”,
diz Maurício Santoro. “Se voltarmos mais no tempo, a década de 1990 é
relativamente estável na Bolívia. As tensões começam com a chegada ao poder do
Evo Morales em 2006, que provoca fraturas de poder. Ele começa a fazer política
redistributiva de renda, nacionalizar os hidrocarbonetos, entre outras
questões, que geram insatisfações com a elite. A Bolívia ela entra num cenário
de piora dessa estabilidade democrática, porque o Evo desestabiliza um sistema
anterior de poder, em que a população pobre indígena estava sub-representada.
Isso faz crescer o movimento reacionário, que se manifesta até hoje”, diz
Arthur Murta. Para os pesquisadores, é preciso considerar também um contexto
mais amplo na América do Sul, com avanço de grupos e lideranças de
extrema-direita, que representam o crescimento de movimentos autoritários e
antidemocráticos. Em alguns casos recentes, houve tentativas de golpe
igualmente fracassadas. “Essa tentativa de golpe faz parte de um contexto mais
amplo de crise da democracia na América Latina. Esse ano a gente teve na
Guatemala uma tentativa de impedir a posse de um presidente eleito.
Manifestantes invadiram o Congresso no Brasil no ano passado em tentativa de
golpe. Bom que a democracia está resistindo e mostrando ter anticorpos e ser
mais resiliente. Mas é preocupante que todas essas crises estejam ocorrendo na
região nos últimos anos”, diz Maurício Santoro. “O que foi positivo hoje é que
a resposta internacional foi muito forte na defesa da democracia boliviana.
Todos os países da América do Sul se manifestaram em maior ou menor grau em
defesa da democracia. Isso foi uma coisa importante. A Organização dos Estados
Americanos também respondeu de modo muito rápido e contundente”, acrescentou. Leia
Também: Governo
brasileiro condena tentativa de golpe na Bolívia.( Fonte Mundo ao Minuto Noticias)
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