Dados da Secretaria de Segurança Pública mostram que, em 2022, a cada 25
dias uma mulher foi vítima de feminicídio.
Oito mulheres sofrem algum tipo
de violência doméstica por
dia no Distrito Federal. Só nos primeiros três meses do ano,
3.909 se tornaram vítimas dentro da própria casa e procuraram a polícia. As
estatísticas são da Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF) e reúnem registros
que vão da agressão psicológica à física e, não raro, chegam até a morte.
Especialistas são unânimes em afirmar que a cultura machista e a falta de
políticas públicas para combater o crime encorajam a violência contra as
mulheres. Maria* viveu essa violência por quase quatro anos. A
rotina de agressão e humilhação era presenciada pelos filhos pequenos, de 1 e 3
anos, e ela chegou a ser atingida por uma cadeira arremessada pelo
ex-companheiro em um dos episódios de fúria. "No começo, era bom. Mas
depois ele passou a me bater por qualquer motivo, principalmente quando estava
bêbado. Bastava beber para quebrar todas as coisas dentro de casa, me ameaçava
e me xingava. Um dia, fui trabalhar com o corpo todo roxo; eu tinha vergonha
daquilo", detalha. Leia também: Três mulheres são
vítimas de feminicídios por dia no Brasil Com a
ajuda de pessoas próximas, reuniu forças e criou coragem para sair do
relacionamento, mas não para denunciar, embora tivesse as evidências de que era
agredida com frequência. Maria decidiu silenciar e apenas se afastar do
agressor, para, segundo ela, "criar os filhos em paz".A socióloga
Tânia Mara Campos, integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Mulheres
(NEPeM) e professora na Universidade de Brasília (UnB), destaca que a violência
contra a mulher está diretamente ligada ao machismo. É a forma de deixar claro
quais lugares homens e mulheres ocupam em uma sociedade patriarcal. "Quando
alguém é desvalorizado, essa pessoa é colocada em um lugar de submissão. A
violência, especialmente essa de gênero, é usada para a manutenção das
vantagens masculinas, e ela é obtida pela redução moral, pela humilhação e
subjugação da mulher", comenta. Ela também destaca que até as formas mais
subjetivas de violência contra a mulher naturalizam a desigualdade de gênero,
que tem como último estágio o feminicídio. "A violência também pode
ser psicológica e emocional, quando a confiança dessa mulher vai sendo minada
aos poucos, isso também é sintoma de uma sociedade patriarcal, que nos diz que
somos mais emotivas, que somos impulsivas e mais emocionais, e que o homem é o
detentor da racionalidade e dos conhecimentos. É uma construção que desvalida
nossa percepção de mundo e escalona para outras violências", ressalta. Medo
de vingança, preocupação com a criação dos filhos, crença de que aquela será a
última agressão e dependência financeira são os principais motivos para o
silêncio. A desembargadora Ivana David, do Tribunal de Justiça de São Paulo,
ressalta que a medida protetiva é fundamental, mas não é garantia de que as
mulheres terão a assistência necessária. "Temos que avançar na forma de
acolher as mulheres que estão nessa situação de violência. Muitas vezes, a mulher
deixa de procurar a Justiça porque, saindo daquele ambiente, ela não tem lugar
para morar, não tem emprego e não tem onde deixar os filhos para trabalhar;
isso faz com que ela desista de procurar a Justiça", comenta. Ela destaca
a necessidade de que as instituições atuem em rede para promover esse
atendimento especializado. "É urgente e necessário falar sobre o tema da
violência doméstica, construir uma rede de proteção para as vítimas; senão a
gente não consegue interromper esse ciclo. Muitas tentam resolver sozinhas, mas
não chegam ao final. O esforço tem que ser no sentido de educar, informar e
encorajar essas mulheres a procurar as autoridades, a polícia e a Justiça; esse
ainda é o melhor caminho para blindar as vítimas.” *A
pedido da vítima, seu nome foi ocultado da reportagem. ‘Sensação de
medo e insegurança’ Mas nem sempre a Justiça ajuda a aliviar o sofrimento de
quem passou pelo pesadelo da violência doméstica. Suzy Alves, irmã de Pauliane
Alves, morta em 15 de janeiro de 2017, conta que percebeu que o cunhado,
Renilson de Sousa, era controlador e ciumento, mas que não imaginava que ele
fosse capaz de matar a mulher de forma tão cruel. Não é fácil segurar a emoção
ao lembrar daquele domingo, dia do crime. As irmãs passaram horas juntas e
Pauliane estava feliz porque voltaria a trabalhar no dia seguinte. Ela havia
ficado fora do mercado de trabalho por ciúmes do marido, mas disse que estava
cansada de ceder às chantagens dele. "Nesse dia, chamei ela para morar
comigo, mas ela disse que não queria atrapalhar. Aí ficou decidido que iríamos
procurar um aluguel para ela no dia seguinte, para ela ficar livre dele",
relembra. O dia seguinte não chegou para Pauliane. Pouco depois de se despedir
da irmã, a jovem discutiu com o marido e foi morta com seis golpes de faca, na
cabeça, pescoço e ombro. Toda a cena foi presenciada pela filha do casal, que
na época tinha 1 ano de idade. "Eu não imaginava que podia acontecer o
pior. Hoje fico pensando que os sinais estão lá, mas às vezes a mulher está tão
vazia, com baixa autoestima, se sentindo inferior, que acha que aquela
demonstração de sentimento abusiva é amor, mas não é amor." Pauliane,
conta Suzy, sempre foi admirada pela família e por amigos. Baiana, se mudou
para o Distrito Federal em 2010 para dar uma vida melhor aos pais. Ela já havia
trabalhado como professora em creche, babá e vendedora, mas gostava mesmo de
trabalhar com crianças. "Ela era uma supermãe. Eu acho que ela pensou
tanto na filha, que queria criá-la em uma família, com pai e mãe, que ela deu um
voto de confiança para o Renilson." Seis anos após o crime, Renilson foi condenado a 20
anos e 6 meses de prisão pelo crime de feminicídio, em
abril de 2022. Mas ficou apenas um mês preso. O alvará de soltura, assinado
pelo desembargador Sebastião Coelho da Silva, em 19 de maio, foi como um golpe
para a família de Pauliane. "Uma pessoa matar outra, ficar só respondendo
processo, quando a Justiça parece que foi feita, ela não é feita. Me senti
enganada e uma sensação horrível de medo, insegurança e decepção",
finalizou Suzy. Pandemia de feminicídios Desde março de 2015, quando entrou em
vigor a Lei do Feminicídio, até o mês de junho de 2022, 139 mulheres foram
mortas no Distrito Federal. 74% dos casos ocorreram dentro das residências, em
crimes cometidos pelos companheiros das vítimas (84%), por ciúmes (64%) ou por
causa do término do relacionamento (21%), é a chamada "quebra da virilidade
masculina". A informação é da Câmara Técnica
de Monitoramento de Homicídios e Feminicídios (CTMHF) da
SSP-DF. O monitoramento também mostra que a morte dessas mulheres deixou 262
órfãos. Desses, 159 são menores de 18 anos. Cerca de 30% têm até 4 anos; 29%,
de 5 a 9 anos; e 30%, de 13 a 17 anos. A idade média das crianças que tiveram o
convívio materno interrompido é de 8 anos. Leia também: Maus-tratos contra
crianças e adolescentes crescem 21,3% Desde o dia 9
de março de 2015, assassinatos de mulheres envolvendo violência doméstica e
questões de gênero passaram a ser qualificados como crimes hediondos, com penas
de até 30 anos. Mestre em ciências políticas e especialista em ciências
criminais Vitor Poeta explica que o crime de femincídio, em geral, acontece em
relações afetivas entre marido e mulher ou namorados, mas essas relações não
são as únicas descritas na lei. “No Código Penal, o feminicídio está tipificado
como o assassinato de uma mulher cometido por razões da condição de sexo
feminino, quando o crime envolve violência doméstica e familiar ou menosprezo,
quando há um laço de afetividade, pode ser um primo, tio, sobrinho; ou
discriminação por causa da condição de ser mulher. Ao incluir o feminicídio
como qualificadora do homicídio, o crime foi adicionado no rol dos crimes
hediondos, como o estupro e latrocínio”, explica. O advogado comemora ainda a
aprovação, na última quarta-feira (6), do projeto de lei na Comissão de
Constituição e Justiça (CCJ) do Senado que impede o uso da tese da
"legítima defesa da honra" como argumento para
absolver acusados de feminicídio. O texto também exclui os atenuantes e
redutores de pena relacionados à "forte emoção" no caso de crimes
contra as mulheres. A proposta segue para a Câmara dos Deputados. Leia também: Violência doméstica
expõe filhos de vítimas a fogo, surra e abuso sexual
Essa mesma tese já havia sido rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal em março
deste ano. No julgamento no plenário virtual, o ministro Dias Toffoli, relator
do caso na Corte, disse que o argumento é inconstitucional e não pode ser
encarado como uma leitura da "legítima defesa", prevista na
legislação, ou usado para justificar crimes de feminicídio. "No tribunal,
muitas vezes os advogados ainda usavam teses para colocar supostas traições da
mulher, por exemplo, como um motivo para reduzir a pena de homicídio, o que
podia fazer com que a pena ficasse abaixo dos 6 anos. De uma maneira geral,
esse argumento tira a vítima do lugar de vítima e a coloca como autora, ela
passa a ser alguém acusada de cometer traições, isso que precisa ser combatido."
Orçamento defasado De janeiro a junho de 2022, o governo gastou R$ 3 milhões
com políticas de enfrentamento à violência contra a mulher. R$ 2,3 milhões em
construções de centros de atendimento à mulher e de Casas da Mulher Brasileira.
R$ 533 mil em políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres. R$ 200
mil em atendimentos à mulheres em situação de violência. Esse orçamento só não
é menor do que o de 2021, quando durante todo o ano o governo gastou 2 milhões
nessas políticas. Até junho do ano passado, haviam sido gastos R$ 48 mil. No
mesmo período, em 2018, haviam sido pagos R$ 19 milhões para políticas de
prevenção à violência contra a mulher. No mesmo período em 2017, foram gastos
R$ 22 milhões. O R7 procurou o Ministério da Mulher, da
Família e dos Direitos Humanos para comentar os números, mas não recebeu
resposta até a última atualização desta reportagem.Como denunciar violência
doméstica O DF tem uma Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam),
na Asa Sul, mas os casos também podem ser denunciados online, na
delegacia eletrônica. Também é possível fazer denúncias no Ministério
Público (MPDFT) e pela Central de Atendimento à Mulher
do Governo Federal, no telefone 180 ou no site.(
Fonte R 7 Noticias Brasilia)