Especialistas apontam que armamento obtido legalmente alimenta o crime;
não há pena para quem deixa de comunicar extravio.
O número de armas furtadas,
roubadas, extraviadas ou perdidas por caçadores, atiradores e colecionadores de
armas de fogo (chamado de CACs) aumentou 35,9% em 2021, em relação ao ano
anterior. Os dados são do Exército, obtidos por meio da Lei de
Acesso à Informação.Desde 2018, a tendência era de queda nos dados. Entretanto,
em 2020, o número foi de 498 e saltou para 677 no ano passado. A
quantidade é ainda maior quando se soma os dados dos clubes de tiro, alcançando
o total de 699 armas extraviadas ou roubadas em 2021. O registro de CACs é
feito pelo Exército por meio do Sistema de Gerenciamento Militar de Armas
(Sigma). Demais civis que desejam ter armamento precisam fazer a solicitação à
Polícia Federal pelo Sistema Nacional de Armas (Sinarm). Em ambos os casos, é
exigido que o interessado atenda a uma série de requisitos, como não responder
a nenhum inquérito policial ou processo criminal.O número de extravios
acompanha o aumento de registros de CACs. De 2020 para 2021, por exemplo, houve
um aumento de 62,6% de novos registros concedidos a CACs. Já comparando 2018
com o ano passado, o aumento foi de 333%, como
já mostrado pelo R7.
Atualmente, no país, existem 673,8 mil pessoas físicas com Certificado de
Registro (CR) de arma de fogo para CACs. Especialistas ressaltam que a
flexibilização das regras de acesso a armas promovidas de 2019 para cá gerou um
aumento significativo de CACs no país. Gerente de projetos do Instituto Sou da
Paz, Bruno Langeani afirmou que o grupo tem alertado que esta flexibilização
gerou uma "explosão de pessoas registradas nesta categoria".Um dos
pontos de maior preocupação, como frisou Langeani, é que esses armamentos
são, por vezes, desviados para a criminalidade. "O fato de crescer o
número de armas nas mãos dessas pessoas faz crescer o número de desvios, porque
parte desse acervo vai para a mão do crime", disse. De acordo com ele,
existem dois fenômenos: o dos CACs que são roubados e os "laranjas"
que retiram o registro para pegar armas legais e enviar para o crime
organizado."O crime aproveita essa flexibilização para mandar alguém sem
registro criminal registrar essas armas e repassar", disse. Em junho, a
Polícia Civil de São Paulo apreendeu armas que foram adquiridas
por meio de um certificado de colecionador, mas estavam sendo
usadas pela facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC). Dentre as
armas, estavam pistolas, submetralhadora e fuzil. Na época, a polícia informou
que o grupo usava "laranjas" para comprar armas de forma legal com
registro de CAC.Em outro caso mais recente, uma operação da Polícia Federal
deflagrada na última quinta-feira (14), em Minas Gerais, tinha como alvo um
membro do PCC que obteve o certificado de registro como CAC. O registro foi
obtido graças a uma certidão negativa obtida pelo Tribunal de Justiça do estado
e uma declaração de idoneidade falsa. Foram apreendidas com ele sete armas,
sendo um fuzil.Integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Isabel
Figueiredo observou que tem-se visto muitas notícias de pessoas que utilizam
registros de CACs, "mas que, no final, são fornecedores de armas para o
crime organizado". Figueiredo ressaltou que isso não quer dizer que
todos os CACs, ou a maioria, estão intencionalmente repassando seus armamentos
ao crime, mas
que a situação é preocupante. "Existe muita gente bem intencionada, mas
essa é uma brecha para o crime. Com a legislação frouxa e o Exército sem
capacidade de controle, o próprio crime está percebendo que é uma brecha para
se armar. (...) Estamos falando de arma comprada por CAC, mas que no final vai
matar um pai de família. Não tem isso de arma legal e arma ilegal, como se
fossem duas completamente diferentes. Não são. É a mesma arma. A arma legal
migra para a criminalidade", relatou. O Exército garante realizar
regularmente ações de fiscalização (leia mais abaixo).Figueiredo explicou que
os números são muito preocupantes, mas que o cenário é esperado, tendo em vista
o aumento na quantidade de CACs. A especialista ainda lembrou que um dos pontos
de preocupação é que os números podem ser muito maior, quando nem todos
informam ao Exército a perda ou roubo de uma arma. Instrutor de armamento
e de tiro credenciado e guarda civil metropolitano de Goiânia,Leder Pinheiro
diz não acreditar que o crime organizado esteja entendendo como mais viável
pegar armas com registro de CAC do que no contrabando. "Um criminoso
comprar arma no mercado nacional é muito mais caro do que ir no Paraguai
comprar, e é muito mais fácil de ser descoberto. Não compensa", opina.Sobre
o aumento de armas extraviadas e
roubadas, ele diz que muitos dos casos vistos por ele são armas antigos, de
antes do Estatuto do Desarmamento. Como essas pessoas não entregaram os objetos
na época e não regularizaram o registro, ao tentar obter novo armamento
legalmente são impedidas pelos registros de uma arma antiga. Para não fazer a
entrega, segundo Pinheiro, elas preferem registrar que o objeto foi extraviado."É
num contexto de legislação mal feita. Se anistiassem os donos de armas
irregulares, você iria ver a quantidade de gente que iria informar que
encontrou a arma", defendeu.Decretos Bruno Langeani ressalta que a
situação tem relação direta entre o aumento de armas e munições com decretos
editados pela Presidência desde 2019. Algumas medidas foram revogadas pelo
próprio governo e outras foram suspensas por decisões de ministros do Supremo
Tribunal Federal (STF). Essas liminares são válidas até que o plenário da Corte
analise as ações, que estão paradas após pedidos de vista do ministro Nunes
Marques.Entre os decretos, há um publicado em 2019 e alterado em 2021 que teve
trechos suspensos pela ministra Rosa Weber.
Uma das regras ainda válidas é relativa ao número de armas a que atiradores e
caçadores podem ter acesso. O decreto autoriza 60 itens para atiradores e 30
para caçadores – então, uma pessoa com os dois registros (de caçador e de
atirador) pode ter acesso a 90 armas.Subnotificação e fiscalização Integrante
do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Isabel Figueiredo afirma que enquanto
o cenário é de flexibilização do acesso a armas, o Exército não ampliou a
fiscalização. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgados em
junho deste ano, mostram que enquanto no ano passado havia 515.253 pessoas
físicas com certificado de CAC ativo, o Exército realizou 11.639 visitas
de fiscalização, o que representa 2,25% do total de pessoas.O Exército rebate a
informação e frisa que "realiza regularmente ações e operações de controle
e de fiscalização para verificar o atendimento dos administrados do Sistema de
Fiscalização de Produtos Controlados às normas vigentes". O órgão aponta
um número diferente do Anuário, dizendo que no ano passado foram mais de 18,4
mil ações e operações de fiscalização dessa natureza."Como resultado,
foram apreendidas mais de 1,8 mil armas de
fogo e quase 500 mil munições, entre outras autuações. Em 2022, o número de
ações e operações de fiscalização de produtos controlados pelo Exército já
ultrapassa 11 mil", afirmou.O órgão exige que a perda, roubo ou extravio
da arma de fogo, acessórios e munições de propriedade de um CAC seja comunicada
por meio de um sistema, no prazo de até 72 horas a partir da ocorrência do
fato. Caso a pessoa não cumpra o previsto, não há uma pena, mas pode ser
multada e ter o registro cassado.Especialistas apontam que esta comunicação nem
sempre ocorre. É por isso, inclusive, que Isabel Figueiredo aponta que o número
real de armas extraviadas por ser ainda maior.Bruno também opina da mesma
maneira. "Esse número certamente está subnotificado. Encontramos nas
pesquisas casos de armas apreendidas no crime e que ainda estavam nos acervos
de CACs. E não há nenhum tipo de punição para quem deixa de registrar roubo ou
furto da arma", afirmou.Isabel Figueiredo ressalta que "o Exército
tem obrigação de fiscalizar". "Tem que transformar isso numa
atividade prioritária, principalmente agora com essa explosão de CACs e de
clubes. Se o Exército quer continuar tendo essa atribuição, tem que cumprir atribuição
legal dele de controle e fiscalização (...). A gente está colocando mais armas
nas mãos dos CACs, e o Exército não está, simultaneamente, se fortalecendo para
melhorar o controle", disse.Em nota, o Exército ressaltou que "o
Sistema de Fiscalização de Produtos Controlados sempre foi capaz de rastrear
todas as armas que já foram registradas/cadastradas no Sistema de Gerenciamento
Militar de Armas [Sigma], atendendo a todas as demandas institucionais, quer
sejam investigações policiais ou determinações judiciais, zelando sempre pelo
controle, rastreamento e segurança".( Fonte R 7 Noticias Brasil)