“A
natureza está secando”: quilombo no Marajó vive impactos do arrozal e clima de
violência.
Cachoeira do Arari
(PA) – Vida
e água são praticamente sinônimos. Se é certo que a água rege a vida em todos
os locais do mundo, no caso do Arquipélago do Marajó, no Pará, a afirmação
parece ter outro grau de concretude. No conjunto de ilhas incrustado entre a
foz do rio Amazonas e o Oceano Atlântico, marés, chuvas e períodos de estiagem
determinam todos os aspectos do viver. A tal ponto que Rosivaldo Moraes Correa,
professor de matemática na escola da Comunidade de Remanescentes do Quilombo
Gurupá, em Cachoeira do Arari, um dos 16 municípios localizados no Marajó, fala
em uma ditadura
da água. A expressão é referência ao livro do padre italiano
Giovanni Gallo (1927-2003), “Marajó – a ditadura da água”, que viveu parte de
sua vida no arquipélago. Hoje, porém, os fluxos de água ao redor do município
de Cachoeira do Arari estão impactados por um agente externo, capaz de tudo
abalar: água envenenada pelo uso intensivo agrotóxico das fazendas, fuga de
animais e a até então inconcebível seca de igarapés acompanham uma severa
transformação do Marajó em um polo de rizicultura. Rosivaldo explica o ciclo
das águas, regido por duas forças principais: as marés, que ditam diariamente a
possibilidade de locomoção entre as casas, realizável apenas de barco; e as
estações do ano, marcadas pelo alto índice pluviométrico no inverno chuvoso e
um verão seco. Em linha reta, apenas 71 quilômetros separam Cachoeira do Arari
da cidade de Belém, capital do Pará. Mas a viagem é longa e envolve uma
tortuosa travessia de balsa, que pode durar três horas, entre Belém e
Salvaterra, município vizinho à Cachoeira do Arari. Até poucos anos, só se
chegava ao quilombo de barco. Hoje existe um ramal com acesso pela estrada que
liga Cachoeira do Arari à Salvaterra. Antes da chegada à sede do Município,
envereda-se por um ramal, atravessando plantações de arroz e descampados onde
são criados búfalos de maneira livre, muitas vezes adentrando a estrada – o que
demanda cautela do condutor. Pouco a pouco a vegetação se transforma. A
savana vai ganhando densidade, até chegar ao território quilombola, cercado por
floresta densa e açaizais. Na parte do quilombo ao redor do rio Gurupá, existe
uma área de terra firme onde moram algumas das 850 famílias que compõem o
quilombo. Ele ocupa uma área de 11 mil hectares, divididos em sete setores, e
que formam uma única comunidade. Para além desta área de terra firme, há também
uma região de várzea fértil para os açaizais, que se estende pelo rio Arari e
seus belos igarapés. São cursos de água sinuosos, cercados por árvores
inclinadas, que pendem em direção ao rio. Os arrozais impactam a vida no
Quilombo Gurupá desde o ano de 2010, quando o agropecuarista Paulo César
Quartiero chegou à região para expandir seus negócios de arroz. Segundo os
quilombolas, os impactos são muitos, e possuem várias facetas. O agropecuarista
e político gaúcho, para escoar sua produção, construiu um porto no território
reivindicado pelos quilombolas, sem que estes fossem consultados. O arrozal,
por si só, atrai patos e marrecos, que deixaram o território do quilombo. A
migração dessas aves influenciou tanto o ecossistema quanto a alimentação de
seus moradores: além de terem perdido uma importante fonte de proteína – o pato
é um dos elementos tradicionais da culinária paraense – fugiram seus
predadores. Para que cresçam os arrozais e se evitem as pragas, Quartiero
utiliza nas lavouras agrotóxicos que chegam ao quilombo pelo fluxo dos rios.
Por fim, para irrigar as plantações, a água da foz do Rio Arari é retirada,
influenciando na reprodução dos peixes e secando os igarapés. Também o açaizal,
principal fonte de renda para os quilombolas, começou a secar, sem que estes
compreendam os motivos de tal mudança“Nós estamos na foz do rio Arari. Com
relação à rizicultura no município de Cachoeira do Arari, com a chegada do
Quartiero, que tem empreendimento colado com a sede do município, nas margens
da rodovia PA-154, aí vocês podem dizer: ‘está longe do território, não
influencia’. Nós acreditamos que influencia. Direto”, afirma Rosivaldo Correa,
referindo-se ao conhecido ruralista que encabeça a produção da monocultura de
arroz na região. A reportagem da Amazônia Real visitou
a Comunidade Quilombo Gurupá na primeira quinzena de janeiro deste ano.
Rosivaldo denunciou o impacto do uso de agrotóxicos no lugar, uma realidade que
está longe de ser restrita ao quilombo, e que assola pequenas comunidades
tradicionais da Amazônia. A aplicação é “feita por via aérea. Todos os dias,
quando está germinado, de acordo com o período que eles julgam necessário. Todo
mundo é testemunha porque todo mundo vê, passa na PA-154. Tem vezes que já
aconteceu de pessoas passarem de moto, e quando ver está todo molhado de
agrotóxico”. Ele conta também que há intenso uso de produtos químicos
para secar as plantações por parte de Quartiero. Às vezes, quando vai para a
cidade resolver alguma pendência, a vegetação está verde. Poucas horas depois,
ao retornar ao quilombo, ela está toda seca. “Tudo isso, não tem outra palavra:
é veneno”, afirma.( Fonte Amazônia Real por Fabio Zuker)