ARTIGO: Novo governo, estratégia
antiga? A dissuasão estendida no Indo-Pacífico.
Pesquisador debate o que muda com o
governo Biden na grande estratégia geopolítica norte-americana em relação à
Ásia.
Findados os quatro anos da
administração Trump, marcada por uma guinada
jacksoniana na condução de sua Grande Estratégia, os Estados
Unidos, sob a gestão Biden, sinalizam uma revisão de sua postura e estratégia
global. Dentre todas as regiões do mundo, o Indo-Pacífico se notabiliza como
fulcral para os destinos do redesenho da ordem global, com implicações diretas
e importantes na condição dos Estados Unidos como potência hegemônica. Nesse
contexto, a dissuasão tem lugar de destaque entre aspectos impactados pela
mudança do ambiente estratégico. Sendo ela uma estratégia de
tipo coercitivo, mediante ameaça crível do uso da força, a dissuasão
objetiva desencorajar atos de agressão de um ator contra o outro. Esse efeito
estratégico pode transcender as fronteiras do dissuasor, ao buscar a dissuasão
em proveito de terceiros países, como aliados e parceiros regionais. Essa
segunda modalidade é conhecida pela literatura como “dissuasão estendida”. Refletindo
o contexto de acirramento da competição geopolítica entre o país e seus near-peer
competitors (especialmente China e Rússia), em 9 de março de
2021, em audiência para
o United States Senate Committee on Armed Services, o almirante Philip
S. Davidson proferiu uma frase que ilustra bem o desafio
estratégico imposto aos EUA: “O maior perigo para os Estados Unidos nesta
competição é a erosão da dissuasão convencional. Uma postura dissuasória
convencional e crível é necessária para prevenir conflitos, proteger os
interesses nacionais e dar segurança aos nossos aliados e parceiros. Na
ausência de uma dissuasão convincente, a República Popular da China (RPC) será
encorajada a tomar medidas para minar as regras baseadas na ordem internacional
e os valores representados na nossa visão para um Indo-Pacífico livre e
aberto”. A afirmação acima nos inclina a refletir sobre três fatores: a
dissuasão na Grande Estratégia e na estratégia militar dos EUA, a geopolítica
de suas alianças e alinhamentos e o entendimento sobre como a potência
estadunidense percebe essa competição no contexto da
erosão de sua superioridade militar e tecnológica. Dissuasão
estendida em xeque Nas últimas duas décadas, a
preocupação do governo dos EUA com a Ásia-Pacífico tem sido uma constante.
Entretanto, o engajamento de suas forças militares em outros teatros, como o
Oriente Médio, contribuiu negativamente para a concretização de ações como o “Rebalance to Asia and
the Pacific”. Ademais, as tentativas de conter a China por meio
de seu engajamento foram infrutíferas, não logrando frear a expansão do poderio
militar chinês e as ambições territoriais de Pequim. Enquanto a administração
Obama optou por priorizar instrumentos de poder econômico e político para
conter o redesenho chinês da ordem regional na Ásia-Pacífico, o governo Trump
apostou na fungibilidade do poder militar e em sua capacidade de alavancar
negociações, a exemplo da prática de diplomacia coercitiva. Como aponta David
Cooper, as estratégias de
Obama e Trump tiveram como efeito erodir a credibilidade da
dissuasão estendida aos aliados americanos no Indo-Pacífico. No âmbito da
geoestratégia dos EUA, parceiros regionais como Japão, Coreia do Sul e Taiwan
são fundamentais para operacionalizar estratégias de contenção. Estas,
desenvolvidas nos Estados Unidos a partir da influência de geopolíticos e
diplomatas, como Nicholas J. Spykman e George F. Kennan, respectivamente,
retomam espaço de centralidade na Grande Estratégia da potência para o
Indo-Pacífico. Parafraseando para o contexto asiático a interpretação de
Halford Mackinder sobre a Midland Ocean, Japão e
Taiwan constituem dois porta-aviões inafundáveis, enquanto a Coreia do Sul
representaria uma cabeça de ponte fixa direcionada para a China, tendo na
Coreia do Norte o Estado-tampão por excelência. No Índico, o cortejo dos EUA à
Índia possibilita pressionar Pequim em duas frentes, continental e marítima,
costurando assim um cerco estratégico multidimensional (econômico, diplomático,
militar etc.). Somado ao posicionamento e a sua relevância geopolítica, a
postura dissuasória busca concretizar efeitos práticos na região. No campo
nuclear, a promessa do cobertor nuclear de Washington objetiva dissuadir
agressões contra seus aliados, ao passo que retira destes a necessidade de se
engajarem na proliferação nuclear. No campo convencional, a presença militar
massiva dos EUA visa a complementar o efeito dissuasório das armas de
destruição em massa. Ambos os pilares dessa postura no Indo-Pacífico foram, no
entanto, severamente afetados na última década por 1) revisão da estratégia de
contenção à China (Administração Obama) e 2) adoção de postura unilateral e
revisão da prioridade das alianças e alinhamentos na Europa e Ásia
(Administração Trump).
Estratégia de Biden Diante desses
eventos, outros dois fatores se somam na configuração do ambiente geopolítico
que confronta a gestão Biden. O primeiro seria o reconhecimento da erosão da
dianteira tecnológica e da superioridade militar dos EUA. Tanto Obama como
Trump buscaram mitigar esse efeito, por meio da Third Offset Strategy e
de investimentos substantivos em modernização militar, respectivamente. O
segundo ponto diz respeito à contenção da China: a despeito das iniciativas
anteriores para operacionalizar alguma forma de contenção contra o gigante
asiático, esse objetivo não parece ter obtido sucesso. Tais fatores reverberam
negativamente na expectativa de dissuasão estendida exatamente em dois pilares
para que a dissuasão funcione: credibilidade e capacidade. Nesse sentido, os
recentes movimentos da administração Biden apontam para a busca de se restaurar
a posição dos EUA como principal provedor de segurança para seus aliados,
alicerçado em compromisso político e em capacidades militares para apoiar esse
objetivo. Dois exemplos ilustram bem esse intento. Ao autorizar exercícios
militares no Mar do Sul da China, a escolha dos meios denota compromisso.
Acompanhados de seus respectivos grupos de batalha, os navios-aeródromo
“Theodore Roosevelt” e “Nimitz”, sinalizam não apenas a relevância e a mensagem
para Pequim, também mobilizam meios tradicionais de projeção de poder em uma
área de interesse estratégico para a China. Na última semana, seguindo o pilar
de credibilidade, o presidente Biden reuniu a aliança informal de países do
Indo-Pacífico, o Quad. Dialogando com
Índia, Coreia do Sul e Japão, a administração atual transparece um renovado compromisso de trazer os Estados
Unidos de volta ao jogo geopolítico na região. Embora o governo Biden tenha
sido recém-inaugurado, espectadores atentos podem estar começando a assistir à
retomada de uma postura estratégica mais próxima daquela da época do embate
multidimensional contra a União Soviética — ainda que em um contexto marcado
pela busca de manutenção de sua primazia. E, nesse jogo, a distribuição de
poder global desempenha papel fundamental para os objetivos de longo prazo dos
EUA.( Fonte A Referencia Noticias Internacional)