Projeto em Guarulhos fez 2.716 audiências por
videoconferência. Especialistas criticam modalidade por ‘esconder’ casos de
tortura.
Thiago* foi preso no dia 7 de maio, mês em que a pandemia do
coronavírus ainda registrava um elevado número de casos, mortes e internações.
Às 19h30 daquele dia, durante a abordagem policial em uma cidade do litoral de
São Paulo, o homem de 22 anos teve a costela e os dentes quebrados por agentes
da Polícia Militar. Cinco horas depois, ele ainda prestava depoimento na
delegacia. Somente às 8h do dia seguinte, Thiago chegou a um Centro de Detenção
Provisória de um município vizinho. “O presídio não queria me aceitar devido ao
meu estado físico”, lembra. “Se eu tivesse conversado com o juiz na audiência
de custódia, talvez não tivesse sido mandado para aquele lugar”, afirma. O caso
de Thiago é um dos 52.264 de pessoas presas em flagrante que não passaram por audiência
de custódia com juízes em São Paulo em razão das exigências sanitárias e
protocolos de distanciamento impostos pela Covid-19. De acordo com dados do
Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), entre os meses de janeiro e setembro
deste ano, foram realizadas 82.755 análises de flagrante. Em 52.264 casos, a
Justiça decretou a manutenção da prisão e em 30.179, a soltura das
pessoas. Além disso, foram concedidas 98 prisões domiciliares. No mesmo período
do ano de 2019, a
Justiça de São Paulo realizou 52.251 audiências de custódia. Em 34.254
casos decretou prisões preventivas, em outros 17.953 concedeu solturas e
registrou 1.518 relatos de tortura e maus-tratos. Os números mostram que a
manutenção da prisão foi a decisão em 63,1% dos casos de análises de flagrante
até setembro deste ano. Em 2019, ano anterior à pandemia de coronavírus, a
Justiça manteve 65,5% das prisões — o que mostra uma pequena reducão. O
problema é que, nos 52.264 casos de prisão, as pessoas privadas de
liberdade tiveram acesso restrito à Justiça, dificuldade para se comunicar com
defensores e, em muitas ocorrências, maus-tratos e tortura não foram relatados.
Durante a suspensão das audiências de custódia, o TJ-SP informou que esses
relatos não foram registrados isoladamente. “As audiências de custódia têm dois
objetivos, um deles é pensar juridicamente se a prisão precisa ser mantida, se
é o caso de uma pessoa ser mandada para o sistema prisional”, diz Isabel
Figueiredo, pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). “O
segundo é verificar a integridade física da pessoa presa, se houve tortura,
maus-tratos e violações.” O período em que ocorreram as análises de flagrante,
segundo a pesquisadora, impossibilitou a visibilidade sobre casos de violência
policial. “A tortura não se caracteriza somente como algo físico. Muitas marcas
não aparecem no laudo do IML. Nesse período, tudo se perdeu um pouco”, diz. Para
o presidente do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) e advogado
criminal, Hugo Leonardo, o aumento da violência está relacionado à falta de
fiscalização por parte dos órgãos de controle. “Quando há uma ausência de
controle das autoridades competentes para coibir as irregularidades, os casos
de maus-tratos e torturas crescem”, afirma. Em razão das fraturas e ferimentos,
Thiago foi internado em uma unidade da Santa Casa por 15 dias. Quando se
recuperou, teve de ficar seis meses no Centro de Detenção Provisória até ser
informado sobre o resultado da sentença. “A arma que a polícia apreendeu não
era minha. Nenhuma arma foi apreendida comigo. Mas foram me levando, me jogando
até que fui internado”, lembra. A primeira audiência de Thiago ocorreu somente
em agosto, três meses após ter entrado no presídio. “Fui para a sala e fiquei
em frente a um computador. É complicado fazer na sala da prisão: eu estava
falando com uma pessoa sobre um ato que não cometi, tudo isso deixa a gente
muito abalado. Você até pode falar com a sua defesa, mas já está preso",
diz. Hugo Leonardo, do IDDD, afirma que as pessoas são presas e levadas às
delegacias antes de o Estado comprovar a existência de requisitos necessários
para prendê-las. “Segundo o ordenamento jurídico, a liberdade é a regra, a
prisão provisória é excepcional”, diz ele. “A pessoa é inserida no sistema
prisional antes mesmo de ser apresentada à Justiça." Segundo Mateus
Moro, membro do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São
Paulo, não houve uma significativa redução dos casos de manutenção de prisão.
“Independentemente das estatísticas, em vez de se prevenir a tortura em um
período de exceção, as pessoas tiveram seus direitos mais violados, ou seja,
vivemos num momento de exceção permanente”, afirma o defensor. “Não são
problemas orçamentários, são de gestão. Trata-se de pessoas brancas e ricas
decidindo sobre a vida de pessoas negras e pobres.” Retorno, vídeo e dúvidas O período de pandemia, em que ocorreu a análise
dos flagrantes por videoconferência, foi considerado por especialistas um
retrocesso. “Teve um caráter excepcional, mas é preciso que haja transparência
em relação ao fluxo de pessoas presas, saber se a defensoria acompanhou, quem
garantiu a integridade física dessa parcela da população”, avalia Isabel. Para
ela, o período mostrou ainda um risco que paira sobre as audiências.
“Percebe-se uma tentativa de descaracterizar as audiências, tornando-as mais
burocráticas do que eficientes.” A
liberdade é a regra, mas as pessoas são inseridas no sistema prisional antes
mesmo de ser apresentadas à Justiça Hugo Leonardo,
presidente do IDDD A partir do momento em que o CNJ (Conselho
Nacional de Justiça) determinou a suspensão das audiências em razão da
pandemia, em abril de 2020, as pessoas presas em flagrante passaram a
permanecer em delegacias ou em comarcas até que fosse realizada a análise da
prisão. “O expediente tem de ser realizado em 24 horas, não houve alteração
nesse fluxo”, afirma Felipe Esmanhoto Mateo, assessor da Corregedoria-Geral da
Justiça. “Foi uma solução excepcional que teve de ser adotada, mas não tínhamos
a pretensão de torná-la uma solução definitiva. É nossa obrigação voltar às
audiências.” Desde o dia 4 de outubro, as audiências de custódia voltaram a
ocorrer de forma presencial. No entanto, a videoconferência, que passou a
funcionar em algumas cidades, ganha força e enfrenta críticas de advogados. Em
Guarulhos, um projeto-piloto funciona desde fevereiro. Até setembro, foram
registradas 2.716 audiências, com 1.504 prisões e 1.200 solturas. “Nesse
contexto, a audiência virtual tem sido eficaz e efetiva em sua finalidade. Me
parece que atinge a finalidade de verificar eventuais maus-tratos e não há
qualquer prejuízo em ser adotada de maneira definitiva”, afirmou Mateo. Segundo
o assessor, alguns requisitos são exigidos para assegurar a privacidade da
pessoa presa no momento da audiência. “Nenhum policial pode estar na sala. Se a
pessoa tiver advogado, ele pode entrar para evitar qualquer tentativa de
intimidação. Além disso, existe uma câmera frontal, uma câmera ambiente e outra
externa que monitora a entrada da sala.” A
videoconferência é uma solução em comarcas de cidades muito distantes, onde o
transporte dos presos para os CDPs tem um alto custo Felipe Mateo, da
Corregedoria-Geral de Justiça de SP Em relação aos relatos
de maus-tratos, o assessor afirma que é preciso ter a presença do defensor ou
advogado para que o registro seja feito. “A videoconferência é uma solução em
comarcas de cidades muito distantes, onde o transporte dos presos para os CDPs
tem um alto custo”, diz ele. Entretanto, Fábio Pereira Campos Mizael, membro da
Amparar (Associação de Amigos e Familiares de Presos), afirma que para diminuir
os custos é preciso reduzir o número de prisões. “O custo não está na audiência
de custódia, tampouco no transporte. Casos de tortura não se veem pela tela,
certas coisas só aparecem no corpo da pessoa. Uma audiência virtual não
consegue identificar essas marcas.” Para Hugo Leonardo, advogado do
IDDD, as videoconferências esvaziam o sentido das audiências. “Perde-se o
tratamento adequado, quem operacionaliza são os agentes policiais ou do sistema
penitenciário. A pessoa presa participa de um ato judicial dentro do próprio
calabouço.” Ele afirma ainda que a modalidade acentua uma falta de compreensão
sobre os processos, ainda que mediados por defensores. “Isso porque o defensor
tem dificuldade para ter contato com a pessoa para reunir informações ou mesmo
comprovar local de residência e reunir documentos.” Recurso pouco aproveitado Um dos propósitos das audiências de
custódia, segundo Mizael, da Amparar, é conscientizar juízes sobre as
arbitrariedades da polícia. “Esse período de pandemia foi extremamente difícil
de lidar, há uma perversidade da Justiça em relação às pessoas que poderiam
cumprir prisão domiciliar”, afirma. “Nesse período, é preciso lembrar que as
condições das prisões se agravaram muito. Em alguns presídios, a água era
ligada duas vezes por dia e tinha de ser armazenada em um tambor." O
membro da Amparar diz ainda que, durante o isolamento social, muitos familiares
de presos buscaram a associação para pedir ajuda para acompanhar processos
digitais e audiências virtuais. “Nem todo mundo tem acesso à internet ou um
telefone de última geração em um país tão desigual. Muita gente não conseguiu
acessar os links de atendimento da defensoria”, diz. O custo não está na audiência de custódia, tampouco no transporte.
Casos de tortura não se veem pela tela, certas coisas só aparecem no corpo. Uma
audiência virtual não consegue identificar essas marcas Fábio
Mizael, da Amparar Isabel, do FBSP, concorda que as
videoconferências implicam perdas. “Perde-se o contato pessoal com o juiz, o
momento em que a pessoa pode ser vista. Além disso, há o fator da neutralidade
do espaço físico em que o preso está.” A pesquisadora ressalta que as
audiências são mecanismos recentes e que ainda precisam ser mais bem
aproveitados pela Justiça. “Vários estados só conseguem realizá-las nas
capitais.”Para além do retorno presencial, é preciso discutir, segundo ela,
quantos policiais chegam a ser investigados, processados e punidos após os
relatos de tortura. “A produção da informação precisa avançar: quantas
denúncias de tortura foram apuradas, se eram reais ou não. Não se tem o fim
desse caminho. Parece que a história acaba na audiência em si porque as
investigações não caminham.” * Nome fictício para preservar a identidade do entrevistado (
Fonte R 7 Noticias Brasil)
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