CONTRA COVID 19 "COVID MATA"

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segunda-feira, 8 de novembro de 2021

VIDANEWS - Na pandemia, Justiça de SP prende 52 mil e endossa audiências virtuais.

 

Projeto em Guarulhos fez 2.716 audiências por videoconferência. Especialistas criticam modalidade por ‘esconder’ casos de tortura.

Thiago* foi preso no dia 7 de maio, mês em que a pandemia do coronavírus ainda registrava um elevado número de casos, mortes e internações. Às 19h30 daquele dia, durante a abordagem policial em uma cidade do litoral de São Paulo, o homem de 22 anos teve a costela e os dentes quebrados por agentes da Polícia Militar. Cinco horas depois, ele ainda prestava depoimento na delegacia. Somente às 8h do dia seguinte, Thiago chegou a um Centro de Detenção Provisória de um município vizinho. “O presídio não queria me aceitar devido ao meu estado físico”, lembra. “Se eu tivesse conversado com o juiz na audiência de custódia, talvez não tivesse sido mandado para aquele lugar”, afirma. O caso de Thiago é um dos 52.264 de pessoas presas em flagrante que não passaram por audiência de custódia com juízes em São Paulo em razão das exigências sanitárias e protocolos de distanciamento impostos pela Covid-19. De acordo com dados do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), entre os meses de janeiro e setembro deste ano, foram realizadas 82.755 análises de flagrante. Em 52.264 casos, a Justiça decretou a manutenção da prisão e em 30.179, a soltura das pessoas. Além disso, foram concedidas 98 prisões domiciliares. No mesmo período do ano de 2019, a Justiça de São Paulo realizou 52.251 audiências de custódia. Em 34.254 casos decretou prisões preventivas, em outros 17.953 concedeu solturas e registrou 1.518 relatos de tortura e maus-tratos. Os números mostram que a manutenção da prisão foi a decisão em 63,1% dos casos de análises de flagrante até setembro deste ano. Em 2019, ano anterior à pandemia de coronavírus, a Justiça manteve 65,5% das prisões — o que mostra uma pequena reducão. O problema é que, nos 52.264 casos de prisão, as pessoas privadas de liberdade tiveram acesso restrito à Justiça, dificuldade para se comunicar com defensores e, em muitas ocorrências, maus-tratos e tortura não foram relatados. Durante a suspensão das audiências de custódia, o TJ-SP informou que esses relatos não foram registrados isoladamente. “As audiências de custódia têm dois objetivos, um deles é pensar juridicamente se a prisão precisa ser mantida, se é o caso de uma pessoa ser mandada para o sistema prisional”, diz Isabel Figueiredo, pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). “O segundo é verificar a integridade física da pessoa presa, se houve tortura, maus-tratos e violações.” O período em que ocorreram as análises de flagrante, segundo a pesquisadora, impossibilitou a visibilidade sobre casos de violência policial. “A tortura não se caracteriza somente como algo físico. Muitas marcas não aparecem no laudo do IML. Nesse período, tudo se perdeu um pouco”, diz. Para o presidente do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) e advogado criminal, Hugo Leonardo, o aumento da violência está relacionado à falta de fiscalização por parte dos órgãos de controle. “Quando há uma ausência de controle das autoridades competentes para coibir as irregularidades, os casos de maus-tratos e torturas crescem”, afirma. Em razão das fraturas e ferimentos, Thiago foi internado em uma unidade da Santa Casa por 15 dias. Quando se recuperou, teve de ficar seis meses no Centro de Detenção Provisória até ser informado sobre o resultado da sentença. “A arma que a polícia apreendeu não era minha. Nenhuma arma foi apreendida comigo. Mas foram me levando, me jogando até que fui internado”, lembra. A primeira audiência de Thiago ocorreu somente em agosto, três meses após ter entrado no presídio. “Fui para a sala e fiquei em frente a um computador. É complicado fazer na sala da prisão: eu estava falando com uma pessoa sobre um ato que não cometi, tudo isso deixa a gente muito abalado. Você até pode falar com a sua defesa, mas já está preso", diz. Hugo Leonardo, do IDDD, afirma que as pessoas são presas e levadas às delegacias antes de o Estado comprovar a existência de requisitos necessários para prendê-las. “Segundo o ordenamento jurídico, a liberdade é a regra, a prisão provisória é excepcional”, diz ele. “A pessoa é inserida no sistema prisional antes mesmo de ser apresentada à Justiça." Segundo Mateus Moro, membro do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo, não houve uma significativa redução dos casos de manutenção de prisão. “Independentemente das estatísticas, em vez de se prevenir a tortura em um período de exceção, as pessoas tiveram seus direitos mais violados, ou seja, vivemos num momento de exceção permanente”, afirma o defensor. “Não são problemas orçamentários, são de gestão. Trata-se de pessoas brancas e ricas decidindo sobre a vida de pessoas negras e pobres.” Retorno, vídeo e dúvidas O período de pandemia, em que ocorreu a análise dos flagrantes por videoconferência, foi considerado por especialistas um retrocesso. “Teve um caráter excepcional, mas é preciso que haja transparência em relação ao fluxo de pessoas presas, saber se a defensoria acompanhou, quem garantiu a integridade física dessa parcela da população”, avalia Isabel. Para ela, o período mostrou ainda um risco que paira sobre as audiências. “Percebe-se uma tentativa de descaracterizar as audiências, tornando-as mais burocráticas do que eficientes.” A liberdade é a regra, mas as pessoas são inseridas no sistema prisional antes mesmo de ser apresentadas à Justiça Hugo Leonardo, presidente do IDDD A partir do momento em que o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) determinou a suspensão das audiências em razão da pandemia, em abril de 2020, as pessoas presas em flagrante passaram a permanecer em delegacias ou em comarcas até que fosse realizada a análise da prisão. “O expediente tem de ser realizado em 24 horas, não houve alteração nesse fluxo”, afirma Felipe Esmanhoto Mateo, assessor da Corregedoria-Geral da Justiça. “Foi uma solução excepcional que teve de ser adotada, mas não tínhamos a pretensão de torná-la uma solução definitiva. É nossa obrigação voltar às audiências.” Desde o dia 4 de outubro, as audiências de custódia voltaram a ocorrer de forma presencial. No entanto, a videoconferência, que passou a funcionar em algumas cidades, ganha força e enfrenta críticas de advogados. Em Guarulhos, um projeto-piloto funciona desde fevereiro. Até setembro, foram registradas 2.716 audiências, com 1.504 prisões e 1.200 solturas. “Nesse contexto, a audiência virtual tem sido eficaz e efetiva em sua finalidade. Me parece que atinge a finalidade de verificar eventuais maus-tratos e não há qualquer prejuízo em ser adotada de maneira definitiva”, afirmou Mateo. Segundo o assessor, alguns requisitos são exigidos para assegurar a privacidade da pessoa presa no momento da audiência. “Nenhum policial pode estar na sala. Se a pessoa tiver advogado, ele pode entrar para evitar qualquer tentativa de intimidação. Além disso, existe uma câmera frontal, uma câmera ambiente e outra externa que monitora a entrada da sala.” A videoconferência é uma solução em comarcas de cidades muito distantes, onde o transporte dos presos para os CDPs tem um alto custo Felipe Mateo, da Corregedoria-Geral de Justiça de SP Em relação aos relatos de maus-tratos, o assessor afirma que é preciso ter a presença do defensor ou advogado para que o registro seja feito. “A videoconferência é uma solução em comarcas de cidades muito distantes, onde o transporte dos presos para os CDPs tem um alto custo”, diz ele. Entretanto, Fábio Pereira Campos Mizael, membro da Amparar (Associação de Amigos e Familiares de Presos), afirma que para diminuir os custos é preciso reduzir o número de prisões. “O custo não está na audiência de custódia, tampouco no transporte. Casos de tortura não se veem pela tela, certas coisas só aparecem no corpo da pessoa. Uma audiência virtual não consegue identificar essas marcas.” Para Hugo Leonardo, advogado do IDDD, as videoconferências esvaziam o sentido das audiências. “Perde-se o tratamento adequado, quem operacionaliza são os agentes policiais ou do sistema penitenciário. A pessoa presa participa de um ato judicial dentro do próprio calabouço.” Ele afirma ainda que a modalidade acentua uma falta de compreensão sobre os processos, ainda que mediados por defensores. “Isso porque o defensor tem dificuldade para ter contato com a pessoa para reunir informações ou mesmo comprovar local de residência e reunir documentos.” Recurso pouco aproveitado Um dos propósitos das audiências de custódia, segundo Mizael, da Amparar, é conscientizar juízes sobre as arbitrariedades da polícia. “Esse período de pandemia foi extremamente difícil de lidar, há uma perversidade da Justiça em relação às pessoas que poderiam cumprir prisão domiciliar”, afirma. “Nesse período, é preciso lembrar que as condições das prisões se agravaram muito. Em alguns presídios, a água era ligada duas vezes por dia e tinha de ser armazenada em um tambor." O membro da Amparar diz ainda que, durante o isolamento social, muitos familiares de presos buscaram a associação para pedir ajuda para acompanhar processos digitais e audiências virtuais. “Nem todo mundo tem acesso à internet ou um telefone de última geração em um país tão desigual. Muita gente não conseguiu acessar os links de atendimento da defensoria”, diz. O custo não está na audiência de custódia, tampouco no transporte. Casos de tortura não se veem pela tela, certas coisas só aparecem no corpo. Uma audiência virtual não consegue identificar essas marcas Fábio Mizael, da Amparar Isabel, do FBSP, concorda que as videoconferências implicam perdas. “Perde-se o contato pessoal com o juiz, o momento em que a pessoa pode ser vista. Além disso, há o fator da neutralidade do espaço físico em que o preso está.” A pesquisadora ressalta que as audiências são mecanismos recentes e que ainda precisam ser mais bem aproveitados pela Justiça. “Vários estados só conseguem realizá-las nas capitais.”Para além do retorno presencial, é preciso discutir, segundo ela, quantos policiais chegam a ser investigados, processados e punidos após os relatos de tortura. “A produção da informação precisa avançar: quantas denúncias de tortura foram apuradas, se eram reais ou não. Não se tem o fim desse caminho. Parece que a história acaba na audiência em si porque as investigações não caminham.” * Nome fictício para preservar a identidade do entrevistado ( Fonte R 7 Noticias Brasil)

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