Exaustos, médicos monitoram por dia 30 pacientes com covid em SP.
Agentes de saúde detalham corrida para atender pacientes por telefone e
evitar a morte: "Às vezes, precisamos dar um tempo.".
Trinta ligações por dia. Nos dias mais agitados, a nutricionista Julie Curdi, de 37 anos, chega a fazer 45 chamadas para monitorar pacientes com covid-19, moradores da Brasilândia, um dos distritos mais populosos e vulneráveis da cidade de São Paulo, na zona norte. Por semana, os médicos da Unidade Básica de Saúde do Jardim Guarani chegam a monitorar 150 pessoas. O contato, em um primeiro momento, tem como objetivo descobrir se o paciente manifestou sintomas como tosse, febre, dores no corpo, diarreia ou ausência de paladar e olfato. Aos poucos, se transforma em uma espécie de terapia para quem não tem acesso a nenhuma. “São em torno de três ou quatro minutos de conversa. Quando eles não têm queixas, aproveitam e contam o que estão sentindo. Tem paciente que é carente, não tem apoio social”, afirma Ana Paula Kovacs, dentista que há mais de três anos trabalha na UBS. “Tentamos dar algum suporte, mas aparece de tudo. Eles aproveitam o momento para tirar dúvidas. Até queixas dentárias surgem.” Testagem e monitoramento Entre a primeira e a segunda onda da covid-19, a rotina de trabalho no posto de saúde mudou radicalmente. “Tivemos que nos readequar para atender pessoas que chegam com os mais diversos sintomas”, afirma Julie. “Tentamos controlar o fluxo para não disseminar o vírus.” Para evitar o aumento da transmissão do coronavírus, as pessoas chegam à unidade e fazem os testes PCR. Se o teste diagnostica o vírus, o paciente começa a ser monitorado. “Ligamos por 14 dias para acompanhar todos os sintomas. Isso porque os históricos costumam variar muito. Tem pessoas que começam muito bem, pioram e chegam a falecer.” Na unidade do Jardim Guarani, 258 pessoas estavam em monitoramento enquanto a reportagem era produzida, mas esses números mudam constantemente. “Essa segunda onda veio com muita força, aumentou esmagadoramente o número de pessoas doentes. Nenhum dos profissionais está fazendo o que foi contratado para fazer”, diz a nutricionista, que integra a equipe multidisciplinar de profissionais de saúde. Com caneta e papel nas mãos, as ligações começam a ser feitas entre 9h e 9h30 da manhã. “Antes, tentamos começar mais cedo, mas não era muito funcional. Conseguimos, de fato, falar com cerca de 30 pacientes por dia. Mas o número de tentativas é muito maior”, diz Ana Paula. Isso porque, em regiões como a Brasilândia, muitos moradores trocam de celulares em curtos intervalos de tempos. Da folha de papel, as informações seguem para uma planilha eletrônica e do computador vão para o balanço da Secretaria Municipal da Saúde sobre covid-19. “Estamos na ponta desse sistema”, diz Julie, que faz o acompanhamento com mais quatro médicos das 7h30 às 16h30. Vulnerabilidade e exaustão O drama dos pacientes que vivem em condições de extrema vulnerabilidade se confunde com a exaustão dos profissionais de saúde que também são moradores do mesmo bairro. Julie relata que, há três semanas, atendeu uma mulher de 72 anos com problemas respiratórios. “Entre o sexto e o sétimo dia, começou a sentir um desconforto respiratório. Ela estava bem ruinzinha e pedimos para subir até o posto”, diz. “No dia seguinte, ela foi internada e do hospital não saiu mais.” Com a voz embargada, a nutricionista conta que, na mesma semana que fez esse monitoramento, a avó também morreu. “Fiquei sem conseguir dizer muita coisa”, afirma Julie, que continuou o contato com os familiares da idosa. “As pessoas começam a se emocionar do lado de lá, a gente se emociona do lado de cá. Às vezes, precisamos dar um tempo.” Se o potencial de morte da covid-19 tem se tornado cada vez mais conhecido no país e no mundo, são estes profissionais os primeiros a ouvir os sinais da morte no dia a dia. “Faz parte da nossa rotina. Um dia, a pessoa está doente. No outro, ligamos e descobrimos que a pessoa morreu”, diz Julie. “A gente sente. Não dá para bater o ponto e ir para casa como se nada tivesse acontecido. Estamos falando de vidas, de colegas de trabalho que também estão doentes, muitas vezes intubados.” Além do acompanhamento dos sintomas, os monitoramentos, segundo ela, têm ainda uma função educativa. “Pegamos muitos pacientes que mesmo com sintomas, estão nas ruas. Pessoas com dificuldade para fazer o isolamento em casas pequenas”, diz ela. “O medo de morrer está cada vez mais evidente e ao mesmo tempo existe o receio de entrar em um pronto socorro e não sair mais”, relata. Além da exaustão e dos impactos psicológicos, o pânico do contágio ainda é constante. Ao chegar em casa, a nutricionista se preocupa, principalmente, em não contaminar a filha, uma bebê de quase 3 anos. “Percebemos que a letalidade está muito maior”, afirma. “Conheci pessoas que em uma semana perderam a mãe, na outra o pai e depois o irmão.” Neste ano, Julie começou a fazer terapia para aliar a exaustão e o estresse causado pelo trabalho. “Não damos conta de passar por isso sozinhos, queremos conversar com colegas de trabalho, mas, muitas vezes, estão piores ou tão ruins quanto nós”, diz. “A sensação é de que a covid não vai acabar nunca, mas, vai. Enquanto isso, fazemos o que precisa ser feito.” Diário de atendimento Como a lista de pessoas diagnosticadas com covid-19 é extensa, os profissionais de saúde se dividem para dar conta dos monitoramentos. Por isso, não necessariamente o mesmo médico vai atender a mesma pessoa nos 14 dias de isolamento. “Conseguimos ligar pelo menos umas quatro vezes para as mesmas pessoas”, diz Ana Paula. Nos primeiros contatos, a dentista conta que costumam enfatizar a prevenção dentro de casa. “Trabalhamos em uma área muito periférica. É muito simples falar em isolamento social quando se fala em classe média”, afirma. “Mas para o paciente que mora em um cômodo, é preciso enfatizar a separação de objetos pessoais, talheres. E, principalmente, que não saiam às ruas.”Segundo a dentista, que também integra a equipe multidisciplinar da UBS, os sintomas mudaram muito nessa segunda onda de pandemia. “Hoje, eles são mais diversos, antes eram mais parecidos”, diz. De acordo com ela, na primeira onda, o monitoramento por telefone chegava a 20 pessoas por dia. “Houve um aumento de pelo menos 20%, muita gente está infectada.”Ana Paula afirma que os moradores do bairro Jardim Guarani estão mais receosos, com mais dúvidas em relação à doença. Os casos mais graves, porém, não passam pela UBS, são encaminhados para hospitais e prontos-socorros. “Conversamos com os familiares e se percebemos que eles estão piorando, pedimos que compareçam ao posto”, diz. Os dias mais calmos do monitoramento, geralmente, vão do 11º ao 14º, quando cerca de 70% dos atendidos apresentam melhoras. “Mas tem alguns casos que marcam mais porque é o final que a gente espera.”Ana Paula se lembra de um paciente internado em um hospital de campanha de São Paulo que conseguiu se recuperar. “Era um bem caso sério. Mas ele pode atender ao celular mesmo durante a internação. Acompanhamos até a alta médica”, diz.Para ela, que trabalha como dentista, a covid-19 alterou profundamente a rotina de trabalho. “Estamos acostumados a ficar no consultório, e desde que a pandemia começou passei a ler tudo sobre covid-19 para informar melhor os pacientes”, relata. "Nessa segunda onda, estamos ainda mais sugados. Ficamos exauridos, mas sabemos que é por um bem maior.” Para aliviar a tensão do trabalho, Ana começou a fazer meditação. “Não tinha mais rotina pessoal, nem profissional”, afirma. A dentista, que mora com os pais idosos, criou desde o início uma rotina de segurança, que já segue há mais de um ano. Ao chegar em casa, ela limpa os sapatos com hipoclorito, coloca as roupas de trabalho para lavar e usa roupão de banho. “Hoje, sinto gratidão por não ter me contaminado e conseguir ajudar as pessoas.” “Nós nos conhecíamos pessoalmente. Ela tinha 64 anos. Foi uma semana que fiquei muito mal”, relata Fernanda Francisca de Souza, de 42 anos, enfermeira, responsável por uma equipe de 10 profissionais que cuidam da saúde da família na Brasilândia. Logo que se lembra do caso, Fernanda interrompe o relato: “Se eu me emocionar, você não liga, tá?” E, depois de uma pausa, segue. “Acompanhei por muito tempo e quando lembro que as últimas palavras foram orientações, o sentimento que sempre vem é de impotência”, diz. “A gente está tentando se organizar, mas não estávamos preparados para isso. É um sentimento muito forte de que a gente poderia fazer mais, é muito difícil lidar com a morte.” A enfermeira afirma que no momento em que soube da morte de uma pessoa que está sob monitoramento não conseguiu parar para pensar por conta do intenso ritmo de trabalho. “Por isso acabo me emocionando quando falo”, diz. “Precisamos fazer um balanço entre trabalho e lazer, mas nem sempre é possível”, desabafa. Outro caso marcante para Fernanda foi o atendimento de uma família atendida por ela. No início do monitoramento, a paciente disse à enfermeira que ela estava bem e quem precisava do atendimento era, na verdade, o marido. “Pedi, então, para ele subir para o posto”, diz Fernanda. “Quando chegou aqui ele disse: só vim porque a Fernanda mandou.” O paciente, segundo ela, precisava ser levado ao pronto socorro, mas se recusou a ir naquele momento. “Hoje, ele está intubado no Hospital das Clínicas e a esposa dele, que achava que não tinha nada passou mal e faleceu. É muito difícil fazer com que as pessoas entendam o momento que precisam de atendimento.” No início da pandemia, o monitoramento por telefone não era uma ferramenta muito utilizada. Ela passou a ser essencial à medida que a propagação do vírus ganhou força. “As pessoas foram se adaptando a essa nova realidade. Como é tudo muito novo, foi uma forma que encontramos de ajudar os pacientes a ficarem em suas casas e terem um acompanhamento mais próximo”, afirma. A alternativa diante do receio de se contaminar em unidades de saúde e hospitais funcionou. Fernanda mora com o filho, o neto e a mãe e, segundo ela, seu único escape é quando toma banho em casa. “Meu momento é o chuveiro, quando fico sozinha. Às vezes, a gente precisa chorar. E me pergunto: vou chorar com quem? Essa é a hora que consigo”, diz. A enfermeira conta que na unidade de saúde foram criadas algumas atividades para amenizar as tensões da rotina. Acupuntura e atividades motivacionais são algumas das atividades realizadas entre os funcionários. “Há duas semanas, aumentaram muitos os casos e todo mundo ficou meio triste”, diz Fernanda. A equipe montou, então, uma caixa de frases e recados para serem lidos aleatoriamente. “Chamamos de caixa do anjo amigo. Sabe aquele abraço que ninguém consegue dar? Então.”( Fonte R 7 Noticias Brasil)
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