"Mãe, tem alguma coisa mexendo na minha barriga", disse a
menina, à época com 14 anos e na 29ª semana de gestação.
(FOLHAPRESS) - Vânia (o nome é fictício),
30, de Guarulhos (Grande SP), só soube que a filha Karen (o nome é fictício)
tinha sido abusada pelo marido da sua mãe quando notou o aumento do volume
abdominal. "Mãe, tem alguma coisa mexendo na minha barriga", disse a
menina, à época com 14 anos e na 29ª semana de gestação. Após registrar um
boletim de ocorrência, elas procuraram o Hospital da Mulher, na capital
paulista. Lá, Karen foi submetida a exames, tomou o coquetel preconizado para
casos de violência sexual, mas foi informada de que, no local, abortos legais
só ocorriam até a 20ª semana de gestação. No Hospital Maternidade Vila Nova
Cachoeirinha, também não conseguiu ter acesso ao aborto legal porque a
prefeitura havia suspendido os procedimentos. Mãe e filha precisaram se
deslocar de ônibus até Salvador (BA) para a interrupção da gestação. Foram dois
dias e cinco horas de estrada. O estuprador continua foragido. "Minha
filha sempre pergunta: 'e aí, mãe, não vai acontecer nada com ele? Por que ele
não foi preso se ele cometeu um crime?'", diz a mãe. Segundo a
Constituição, não existe nenhuma restrição para a idade gestacional do feto no
momento do aborto. Mas o PL Antiaborto por Estupro, que tramita em urgência na
Câmara dos Deputados, propõe a criminalização do aborto após a 22 semanas de
gestação para vítimas de estupro. Moro em Guarulhos, tenho duas filhas, uma de
15 e outra de 13, e um filho de quatro. Minha filha mais velha sempre ia passar
o fim de semana na casa da minha mãe, em São Paulo. Eu a levava na sexta e a
buscava no domingo. Minha mãe tinha um marido, de quarenta e poucos anos, que
vivia com ela há mais de 15 anos. Minha filha nunca se queixou de nada, mas, de
repente, mudou de comportamento. Ela sempre foi uma menina amorosa. Com 14
anos, ainda brincava de boneca com a irmã menor, cuidava do caçula. Nunca foi a
baladas, não bebe, não fuma e não sai sozinha. É uma menina de casa mesmo. De
repente, ela se fechou, ficou grosseira, gritava, parecia outra pessoa. Eu
tentava conversar com ela, saber o que estava acontecendo, mas ela me evitava.
Como ela sempre usava roupas largas, camisetonas, demorei a perceber mudanças
no corpo dela. Em novembro do ano passado, desconfiei que ela estava grávida.
Depois de muita insistência, ela se abriu e contou que meses antes tinha sido
abusada pelo marido da minha mãe. Criançona, ela não entendia a gravidez.
Chegou a dizer: "mãe, tem alguma coisa mexendo dentro da minha
barriga". O criminoso se aproveitou da minha filha quando a minha mãe saiu
para trabalhar e ameaçou matar as duas caso ela contasse sobre o abuso. Com
medo, ela se calou por meses. No dia que descobri, fui até a casa da minha mãe
e contei para ela. Minha mãe, que tem problema de coração, desmaiou na hora. O
criminoso já tinha saído da casa da minha mãe e levado as coisas dele. No mesmo
dia, ele ligou para minha mãe, confessou tudo, pediu desculpas, disse que ia se
entregar. Mas, claro, sumiu. A primeira coisa que fizemos foi abrir um boletim
de ocorrência, depois fomos encaminhadas ao Hospital da Mulher, em São Paulo.
Minha filha fez o exame de sangue, ultrassom, tomou o coquetel anti-Aids, mas
avisaram que não poderiam fazer o aborto [o hospital só faz abortos legais até
a 20ª semana de gestação]. Ela estava com 29 semanas. Fomos encaminhadas para o
Hospital Vila Nova Cachoeirinha. Lá a doutora disse que poderia fazer o
procedimento mas precisaria ter a certeza da escolha, se queríamos mesmo fazer
o aborto ou continuar com a gestação. Minha filha só chorava e dizia que não
queria, que tava doendo muito as costas e a barriga. Eu pedi então mais tempo,
uma semaninha, porque ela estava muito abalada, com muito medo, com o
psicológico bem prejudicado mesmo. Uma semana depois a gente voltou com a
decisão de fazer [o aborto]. Foi marcada a cirurgia. Tínhamos comprado tudo,
arrumado a mala, quando ligaram do hospital cancelando. Marcaram mais duas
vezes e cancelaram. Por fim, me informaram que a Prefeitura de São Paulo havia
fechado o serviço de aborto legal do Cachoeirinha. Ficamos desesperadas.
Procuramos a assistente social e soubemos que poderíamos fazer o procedimento
em Salvador, na Bahia. Conseguimos doação das passagens de ônibus, passamos
dois dias e cinco horas na estrada. Minha família fez uma vaquinha e mandava
dinheiro para a gente comer. Na estrada, as coisas são bem caras e eu deixava
de comer para que minha filha se alimentasse bem. Quando chegamos à rodoviária
de Salvador, pegamos um Uber e fomos para o hospital. A assistente social
voltou a conversar com minha filha, perguntou se ela queria mesmo fazer o
aborto e ela disse que sim, que não aguentava mais a situação. Ela já estava
com 31 semanas. Era início de dezembro. Ela se internou às seis e pouco de uma
quinta-feira e fez o procedimento no sábado. Fomos muito bem atendidas e
acolhidas, mas foi muito difícil para ela e para mim. Ela viu [o feto] saindo e
disse: 'olha mãe, o nenê tem o cabelo preto igual ao meu'. Aquilo cortou muito
o meu coração. Eu não queria ter feito isso, ela também não. Ela chegou a
dizer: 'tadinho do nenê, mãe, ele não tem culpa'. Eu disse: 'minha filha, o
bebê não tem culpa, você não tem culpa, eu não tenho culpa, quem tem culpa é o
criminoso' mãe da menina estuprada Ela não estava aguentando mais aquela
situação. 'Ela chorava direto e dizia: mãe, 'por favor, tira ele de dentro de
mim, eu não aguento mais'. Ela não dormia, só chorava, ficou anêmica, temi pela
vida dela. Levar a gravidez adiante só iria prolongar o sofrimento e a
lembrança do estupro. Enquanto ela ainda estava grávida, fui várias vezes à
delegacia para saber como estava o processo, se tinham ido atrás do estuprador.
Me disseram que a papelada estava no fórum da Penha e que a juíza ia marcar uma
audiência para ouvir a minha filha. Até hoje não marcou. Nenhuma notícia,
nenhum 'a'. O criminoso está na rua, nada aconteceu com ele. Minha filha sempre
pergunta: 'e aí, mãe, não vai acontecer nada com ele? Por que ele não foi preso
se ele cometeu um crime?' Dá muita raiva, acho que se eu [o] visse, mataria,
juro. Cadê a lei? Cadê a Justiça? Não existe. Agora [com o PL Antiaborto por
Estupro] querem culpar a vítima de estupro e não vão atrás de quem faz esses
absurdos com crianças e adolescentes. Dá uma revolta muito grande dessas
pessoas que só sabem apontar o dedo, não fazem ideia o que essas crianças e
suas famílias estão enfrentando. Minha filha está passando pelo psicólogo do
SUS todo mês, e é acompanhada também pelo Conselho Tutelar. As assistentes
sociais me dão muito apoio, sempre perguntam se ela está bem, se está
precisando de alguma coisa. No começo, foi muito duro, ela chorava muito,
gritava, parece que estava querendo botar para fora toda a dor, toda a raiva.
Mas nos últimos três meses ela começou a melhorar. Voltou a ficar amorosa, está
cursando o primeiro ano do ensino médio, joga vôlei. Tanto eu como o meu marido
damos muito apoio a ela. Meu marido é evangélico, mas está um pouco afastado da
igreja. A gente crê em Deus, e eu acho que, apesar de tudo o que aconteceu com
minha filha, ele tem um propósito grande para a vida dela. Eu creio que ela
ainda vai ser uma mulherzona. Como parte da iniciativa Todas, a Folha
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por Estupro.( Fonte Justiça ao Minuto Noticias )