ARTIGO: Represa da Renascença
reacende tensões entre Egito, Sudão e Etiópia.
Pesquisador debate os problemas
geopolíticos de disputa por barragem às margens do Nilo, que abastece os três
países.
Muitas
das tensões geopolíticas no Chifre da África são
decorrentes da luta colonial e histórica dessa sub-região que envolveu França,
Itália, Reino Unido e Etiópia (nação que resistiu à jornada colonial europeia
dos séculos passados). Hoje, a herança dessa luta pode ser lida através das
disputas territoriais, as indefinições acerca da posse e do uso dos recursos
hídricos advindos do Rio Nilo e a crescente onda de migração e refúgio,
corolário dos conflitos civis e interestatais que esses países sofreram em seu
passado recente. Recentemente, atritos nas relações de Etiópia, Sudão e Egito
voltaram ao centro das atenções devido ao acirramento das negociações da construção da
barragem no Rio Nilo, projeto e sonho antigos dos governos
etíopes. Dadas as instabilidades internas e rivalidades entre esses três
países, a possibilidade da militarização dessa região é iminente e chama a
atenção. Uma breve retomada histórica das relações tríplices No início de
março de 2021, Sudão e Egito assinaram um pacto militar que visava a melhoria
das relações entre os dois Estados através de um encaixe coeso
no que tange às suas principais políticas de segurança nacional. Este acordo
surge no contexto de negociações das barragens momentaneamente interrompidas da
Represa do Renascimento (Grand Ethiopian Renaissance Dam —
GERD) e a consequente disputa fronteiriça com Sudão e Etiópia. Historicamente,
os três países disputam a posse e usufruto dos recursos
hídricos do Nilo. Importante ressaltar que a Etiópia é um país
montante (mais próximo da nascente) em relação ao Nilo e possui cerca de 85% da
extensão do rio, ao passo que Sudão e Egito estão à jusante (mais próximos da
foz). Em 2011, Meles Zenawi, à época primeiro-ministro etíope, lançou os
fundamentos da GERD. Desde então, reacenderam-se os problemas de cooperação
fronteiriça sobre o domínio das águas daquela região, o que contribuiu para o
pacto firmado em 2021 pelo Egito e o Sudão. Muito embora ambos os países
afirmem que o motivo do pacto tem a ver com as semelhanças em relação aos
desafios de segurança nacional e às grandes possibilidades de spillover das
suas situações internas, é importante que esse pacto também seja interpretado
dentro do contexto geopolítico ampliado. A assinatura do acordo aconteceu após
a visita do Ministro dos Negócios Estrangeiros sudanês, Mariam Al Mahdi, ao
presidente egípcio Abdel Fattah El Sisi. Os chefes de pessoal das forças
armadas de ambos os países, General Mohammed Farid Hegazy (Egito) e General
Mohamed Othman Al Hussein (Sudão), assinaram o pacto na capital do Sudão,
Cartum. Em declaração, ambas as partes expressaram a sua
gratidão pelo aumento das relações de segurança e cooperação entre os dois
países. O General Hegazy declarou que “o Egito está pronto para atender o
pedido do Sudão em todos os domínios, incluindo armamentos, formação conjunta,
apoio técnico e fronteiras conjuntas de segurança”, aludindo à
potencial ameaça iminente que paira sobre ambos os países. Esta declaração
serve como uma garantia para os sudaneses, mas um aviso aos potenciais inimigos
sobre a disponibilidade de recursos e a prontidão para utilizá-los. À época em
que a declaração foi redigida, a Etiópia ainda não havia respondido ao
movimento estratégico de Egito e Sudão. Ainda assim, em março de 2021, o Sudão acusou a Etiópia de estar envolvida em disputas
relacionadas com a fronteira. A disputa de um século sobre a região
al-Fashqa — onde a região de Amhara, na Etiópia, se encontra com o estado
sudanês de Gadarif — foi reacendida recentemente. Os tratados anglo-etíopes de
1902 e 1907 atribuíram a terra ao Sudão, mas os agricultores etíopes utilizaram
as terras agrícolas ao longo dos anos. Em 2008, o antigo primeiro-ministro da
Etiópia, Meles Zenawi, e o governo do Sudão celebraram um acordo
bilateral relativo à disputa fronteiriça da al-Fashqa. A Etiópia reconheceria a
área como parte do Sudão e, em troca, os agricultores etíopes seriam
autorizados a continuar a lavrar as terras agricultáveis. Tanto o Sudão
como a Etiópia acusaram-se mutuamente de usurpação. No início de 2021, o Sudão
recuperou a zona al-Fashqa e acusou a Etiópia de sobrevoar aviões militares,
emboscando soldados sudaneses e matando civis, incluindo cinco mulheres e
crianças. A Etiópia alegou que os militares sudaneses tiraram
proveito de sua supervisão e proteção de fronteiras para
invadir e pilhar propriedades, enquanto abordava o conflito do Tigray.
Cartum, por sua vez, alega que Adis Abeba vendeu armas a
grupos rebeldes para permitir a desestabilização do país, um ato que
os sudaneses entendem como uma tentativa de distração das verdadeiras
questões que afligem ambas as partes e a região, em geral. Estas acusações
surgem na sequência da assinatura do pacto militar entre o Egito e o Sudão em
março. Interesses, segurança e a Represa da Renascença A GERD tem sido um ponto de inflexão à cooperação na
região. Na sequência da decisão unilateral da Etiópia de construir uma barragem
de 6.450 megawatts no alto do Nilo Azul, o Sudão e o Egito contestaram a
decisão invocando direitos “históricos” ou “coloniais” sobre a via navegável,
tal como acordado pelo Tratado Anglo-Egípcio de 1929 e 1959. Na sua busca por
desenvolvimento e autonomia, a
Etiópia considera a segurança energética como um fator importante e integral.
À jusante, Egito e Sudão citaram o risco potencial para a sua segurança hídrica
com implicações para a alimentação, o meio ambiente e a segurança humana, mais
amplamente, nos seus territórios. Independentemente das suas preocupações, a
Etiópia construiu a barragem e a segunda fase de abastecimento está
atualmente em curso. Esta tem sido a fonte do imbróglio entre os três países. O
Egito e o Sudão apelaram a um “acordo global” para assegurar que os seus
interesses não sejam ameaçados após a conclusão da barragem. Em resposta, a
Etiópia rejeitou o pedido de outro acordo e está prestes a iniciar a
segunda fase da construção da barragem. O Egito e o Sudão responderam assinando
o pacto militar para reforçar a inteligência e a partilha de recursos entre os
dois Estados à jusante. Ambiente político interno A dinâmica política interna instável tanto na Etiópia
como no Sudão é outro fator que contribui para a recente instabilidade. Após
sua ascensão como primeiro-ministro da Etiópia, em 2018, Abiy Ahmed cultivou alianças com o descontente Partido
Democrático Amhara (ADP), ao mesmo tempo em que deixou de lado a Frente de
Libertação do Povo Tigre (TPLF), da qual Zenawi (o primeiro-ministro
que cedeu a al-Fashqa aos sudaneses) era membro. No Sudão, o governo de
transição, um acordo de partilha do poder civil-militar foi
recebido com desentendimentos e desconfianças. O Sudão tem de gerir conflitos
no Porto do Sudão e na região de Darfur. Os conflitos internos resultam
frequentemente em migração populacional para áreas menos conturbadas ou regiões
vizinhas e crises de refugiados — complicando ainda mais o desacordo
fronteiriço entre a Etiópia e o Sudão. O papel dos atores externos A administração Trump, juntamente com o Banco Mundial,
liderou o processo de mediação entre os três países, desde novembro de 2019,
até meados dos anos 2020. O fracasso dos esforços internacionais ocasionou a
passagem do bastão ao então presidente da União Africana (UA), Cyril Ramaphosa. Em
2 de março de 2021, os ministros dos negócios estrangeiros egípcio e sudanês
apelaram a uma expansão do quadro de mediação para incluir as Nações Unidas, os
EUA, e a União Europeia. A Etiópia rejeitou este pedido, citando que tal gesto
mina as “soluções africanas para os problemas africanos”, apresentado por Thabo
Mbeki e a agenda pan-africana. Além disso, os esforços estabelecidos por Cyril
Ramaphosa antes de ser sucedido por Félix Tshisekedi, da República Democrática
do Congo, seriam comprometidos. Para além das negociações regionais, também é
necessário pontuar os alinhamentos internacionais que esses países possuem, uma
vez que isso influi diretamente no processo negociador do imbróglio. Embora os
EUA tenham uma boa relação com o governo egípcio em termos militares, a Etiópia
desenvolveu uma das mais fortes relações
econômicas com a China no continente. Embora as relações
Egito-EUA sejam sublinhadas por tensões em torno de questões de direitos
humanos, os primeiros veem os EUA como um aliado influente, sobremaneira na
ONU. A Etiópia, antecipando as dinâmicas apresentadas, insiste que a UA seja o
principal mediador dos processos de negociação. No esquema mais amplo da Agenda
2063 (programa de desenvolvimento econômico africano, lançado em 2015), a UA
tem um papel mais importante a desempenhar na obtenção de um
consenso sobre a GERD, no entanto, o ônus recai sobre o Egito
para reavaliar a premissa sobre a qual reivindica “direitos adquiridos” aos
recursos hídricos da Bacia do Nilo. Por fim, é importante destacar a crescente
presença do estado de Israel no Chifre. À medida em que os laços etíopes e
israelenses se reforçam, o Egito tem se preocupado com as implicações dessa
relação nas negociações das barragens. Dado o histórico de inimizade entre
Egito e Israel, é importante mencionar, entretanto, que essas relações
evoluíram positivamente, especialmente através das linhas de segurança
nacional. Com ambos os países preocupados com a crescente influência do Irã na região árabe e
o aumento da insurgência islâmica na Península do Sinai, no Egito, e no
território palestino da Faixa de Gaza, a ameaça comum às suas agendas de
segurança nacional resultou na cooperação e na coordenação da estratégia entre
ambos. Por que essa questão é importante para a União Africana? Subjacente ao estabelecimento e transição da Organização
de Unidade Africana (OUA) para a União Africana esteve a busca de um
desenvolvimento orientado para a África que seja anti-colonização,
anti-imperialista e anti-imposição externa — uma agenda de desenvolvimento
doméstico que vise à plena exploração do potencial da África como ator
estratégico e global, englobando a fundação da instituição. Ao traçar a sua
trajetória de desenvolvimento, vários tratados e agendas — tais como o
Plano de Ação de Lagos, o Tratado de Abuja, a Nova Parceria para o
Desenvolvimento de África (Nepad) e a Agenda 2063 — foram ratificados por todos
os países do continente africano. Embora a vontade política e o empenho sejam
fundamentais para a implementação bem-sucedida da agenda do desenvolvimento, a
paz, a segurança e a estabilidade são de igual importância. Assim, é necessária
uma ação da UA para escapar ao conflito interestatal na região, ao mesmo tempo
que exorta diplomática e pacificamente todas as partes no sentido de uma
(re)solução duradoura. Contudo, no caso de uma guerra em larga escala, é
importante examinar os potenciais resultados. Mais do que nunca, o presidente
da UA precisa demonstrar liderança no Chifre de África. Uma equipe de
mediadores africanos (com a participação periférica e apoio de parceiros
internacionais estratégicos como os EUA, China, Rússia, e Nações Unidas) é
imperativo e urgente para resistir à tempestade iminente na sub-região.( Fonte
A Referencia Noticias Internacional)