A acusação da Força Aérea ucraniana foi confirmada por analistas consultados pela reportagem a partir de imagens georreferenciadas de redes sociais, embora seja possível que o alcance da arma em questão não a qualifique como intercontinental.
IGOR GIELOW SÃO PAULO, SP
(FOLHAPRESS) - A Rússia disparou em combate pela primeira vez na história um
míssil intercontinental desenhado para uso em guerra nuclear, em um ataque
contra a Ucrânia. Segundo a Força Aérea de Kiev, ele carregava múltiplas ogivas
convencionais e atingiu a cidade de Dnipro na madrugada desta quinta (21).
A acusação da Força Aérea ucraniana foi confirmada por analistas consultados
pela reportagem a partir de imagens georreferenciadas de redes sociais, embora
seja possível que o alcance da arma em questão não a qualifique como
intercontinental. Redes americanas e a agência Reuters, citando
autoridades de forma anônima, dizem que os EUA acreditam que foi usado
empregado um modelos de alcance menor. As imagens de múltiplos objetos
atingindo o solo é consistente com mísseis que podem carregar armas nucleares,
seja qual for o seu alcance. São seis salvas com vários objetos, que não causam
grandes explosões, sugerindo o emprego de munição cinética -que usa sua
velocidade terminal hipersônica para causar grande estrago, sem precisar de
explosivos. Analistas especulam que pode ser um modelo balístico de alcance
intermediário, o IRBM na sigla inglesa, igualmente desenhado para uso em
guerras nucleares como o modelo intercontinental, o ICBM. Sem comprar uma
versão final, o renomado especialista russo Pavel Podvig escreveu no X que o
ataque "deve ser levado a sério". Mesmo o Ministério das Relações
Exteriores da Ucrânia relativizou a afirmação da Força Aérea, pedindo reação
mundial "ao uso de um novo de tipo de arma pela Rússia", segundo o
porta-voz Heorgii Tikhii. "Se for confirmado que era especificamente um
míssil intercontinental, então pode-se dizer que a Rússia degradou-se ao status
da Coreia do Norte, que de tempos em tempos lança tais mísseis." Em meio a
uma entrevista coletiva, a porta-voz da chancelaria russa, Maria Zakharova,
atendeu uma ligação no celular cujo teor vazou no microfone: nela, alguém dizia
a ela para não "comentar o ataque com míssil balístico". Se foi algo
planejado para aumentar o suspense em torno da questão, não se sabe. A ação,
que envolveu outros mísseis, de todo modo representa uma dramática sinalização
simbólica na guerra, que vive um perigoso momento de escalada.
Ele começou no fim de semana, quando foi revelada a autorização dada pelos
Estados Unidos para que Kiev pudesse empregar mísseis americanos com alcance de
até 300 km contra alvos dentro do território russo. O governo de Volodimir
Zelenski, muito pressionado no campo de batalha, pedia havia meses a medida e,
já na terça (19) promoveu o primeiro ataque contra um arsenal russo a 150 km de
sua fronteira. Na véspera, o presidente Vladimir Putin havia dado mais uma
cartada nuclear na disputa, editando a revisão de sua doutrina de uso de armas
atômicas. O texto é bem mais duro do que o especulado: além de prever
retaliação com esses armamentos em caso de qualquer ataque convencional,
considera países e alianças que apoiem tal ação alvos legítimos. Com isso,
Putin colocou no papel o que vinha falando havia meses. Zelenski e outros
líderes ocidentais o acusavam de mais um blefe e foram em frente. Na quarta
(20), Kiev usou pela primeira vez mísseis de cruzeiro britânicos Storm Shadow
contra a Rússia, e seguindo seu manual: disparou 12 modelos de forma
concentrada contra a região de Kursk, para dificultar sua interceptação. Repetiu
a dose com dois mísseis nesta quinta, que a Rússia disse ter derrubado. Mas a
resposta de Moscou contra Dnipro traz um sombrio simbolismo. Segundo a mídia
ucraniana, foi empregado contra a cidade um modelo RS-26 Rubej (fronteira, em
russo), uma versão menor do míssil RS-24 Iars (acrônimo para Foguete de
Dissuasão Nuclear), um dos esteios das forças estratégicas de Putin. Ele foi
desenhado para guerras nucleares, podendo levar estimadas quatro ogivas com
potência equivalente a cerca de 20 bombas de Hiroshima cada. Mas também é
possível configurá-lo para levar mais ogivas convencionais. A questão é que,
para a Rússia, não faz sentido militar empregar tal arma. O RS-26 é muito caro,
complexo e em número reduzido para uma ação rotineira da guerra, no caso o
ataque a uma área de produção militar em Dnipro. Ele é feito para atingir
países distantes, tendo um alcance estimado em 5.800 km. Kiev diz que ele foi
lançado da região de Astrakhan, de uma base a cerca de 800 km a leste de
Dnipro. O alvo foi a fábrica militar Iujmach. Contra a hipótese de ser um ICBM
há o fato de que, por acordo, todo lançamento desse tipo de míssil em testes
pela Rússia e os EUA tem de ser notificado antes, restando saber se a regra
vale em guerra. Há cerca de 400 ICBMs no arsenal de cada um dos rivais
nucleares. Se Moscou de fato uso a arma, algo que o porta-voz do Kremlin,
Dmitri Peskov, não comentou, quis com isso mandar um recado eloquente para
Kiev, Washington e aliados, associando sua mudança de postura nuclear ao
emprego de um míssil criado para esse tipo de ataque. Nenhum ICBM foi usado em
guerras. Nas grandes potências nucleares, eles são a base da força de ataque,
combinados com modelos lançados por submarinos e mísseis ar-terra e bombas de
gravidade carregadas por bombardeiros. Analistas são unânimes em dizer que os
mísseis ocidentais, em especial no número limitado que Kiev dispõe, não irão
mudar o rumo da guerra -que, nesta quinta, viu a Rússia tomar mais uma cidade
no leste ucraniano. Mas o impacto doméstico das ações pode ser grande, o que é
inaceitável para o Kremlin. O ataque desta quinta também atingiu outros pontos
da região de Dnipro. Seis de sete mísseis de cruzeiros subsônicos Kh-101 foram
derrubados, disse a Força Aérea, e um hipersônico Kinjal atingiu o solo. Não há
relato de vítimas ainda. BASE DA POLÔNIA ELEVA RISCO NUCLEAR, DIZ RÚSSIA O aviso nuclear de Putin foi estendido
também nesta quinta pelo Ministério das Relações Exteriores, que criticou a
abertura de uma base de defesa antimíssil na Polônia. A instalação inaugurada
dia 13 passado em Redzikowo "aumenta o risco nuclear", afirmou Maria
Zakharova. Com isso, redes sociais russas, ucranianas e polonesas passaram a
especular se Moscou estava sinalizando que considerava o local um alvo eventual
para ataque, já que segundo sua nova doutrina nuclear na teoria a Otan já
estaria em guerra com a Rússia, já que países da aliança fornecem as armas
usadas contra solo russo. Por evidente, não é para tanto: Putin nunca declarou
guerra nem contra a Ucrânia oficialmente, chamando sua invasão de 2022 de
"operação militar especial". Se isso impediu uma mobilização total
que poderia suplantar a resistência ucraniana, também manteve o público russo
algo distante do conflito, garantindo a aprovação do presidente na casa dos
90%. Ainda assim, a chancelaria de Varsóvia foi a público negar o tal risco
nuclear, dizendo que não há armas do tipo em Reddzikowo. A base é parte do
sistema de defesa antimísseis americano Aegis Ashore, que também existe na
Romênia. Sua criação remonta aos anos 2000, quando o objetivo era proteger a
Europa de ataques vindo do Irã. Mesmo naquela época menos tensa a Rússia já
atacava o sistema, dizendo que ele visava os seus mísseis e que o sistema Aegis
pode empregar armas ofensivas no lugar de interceptadores. A Otan nega a acusação.
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