ARTIGO: As eleições na Somália e
as relações com o Quênia e a Etiópia.
Pesquisador elabora a situação histórica do
irredentismo na Somália e implicações nos países vizinhos desde os anos 1960.
A
Somália está, mais uma vez, em meio à uma crise política.
Os líderes da oposição dizem não reconhecer mais a autoridade do presidente
Mohamed Abdullahi Mohamed, popularmente conhecido como “Farmaajo”,
após seu mandato ter expirado em 8 de fevereiro de 2021 sem um acordo político
sobre as eleições que irão substituí-lo. O mais recente impasse político
da Somália, e a forma como ela eventualmente será resolvida, terá consequências
significativas não apenas para o país, mas também para seus vizinhos,
Quênia e Etiópia, que estão fortemente envolvidos na política somali desde a
independência do país, em 1960. Durante décadas, eles seguiram uma política
alinhada à Somália para combater o irredentismo pan-somali. Irredentismo
pan-somali, ou Soomaalinimo, refere-se à visão somali de
estabelecer uma “Grande Somália” unificada, composta pela Somalilândia
britânica e italiana (atualmente ambas parte da Somália), Somalilândia francesa
(hoje Djibuti), a região de Ogaden na Etiópia, e o Distrito da Fronteira Norte
(NFD), no Quênia. Nos primeiros anos de independência, a Somália travou guerras contra
seus vizinhos para expandir sua soberania sobre todas estas terras, levando a
Etiópia e o Quênia a assinar um acordo bilateral para defender seus
territórios. No entanto, a intervenção militar do Quênia na Somália, em 2011,
suspendeu a aliança de décadas entre Adis Abeba e Nairobi contra Mogadíscio. A decisão das
duas nações vizinhas de apoiar lados opostos na região autônoma da Somália e a
eleição presidencial de Jubbaland, em 2019, aumentou ainda mais as tensões.
Atualmente, enquanto a Somália trabalha para realizar novas eleições e acabar
com sua crise política, a Etiópia e o Quênia também procuram maneiras de
expandir sua influência sobre a liderança política somali. Para entender a
importância para o Quênia e a Etiópia da disputa de
liderança contínua da Somália, é necessário examinar a longa
história de rivalidade e conflito entre os Estados da região. A
Guerra Shifta (1963-1967) No início dos anos 60,
depois que as autoridades coloniais britânicas concederam a administração da
NFD ao Quênia, as comunidades somalis que viviam na região iniciaram uma
revolta armada com o apoio de Mogadíscio para se separar do Quênia e se juntar
à Somália. Em dezembro de 1963, semanas após declarar a independência da
Grã-Bretanha, o governo queniano respondeu
ao conflito em andamento declarando estado de emergência na região. O
primeiro-ministro do Quênia na época, Jomo Kenyatta, deixou claro em seu anúncio
de emergência que o Quênia vê a NFD como parte de seu território e que qualquer
conflito na região será considerado doméstico. Nos meses seguintes, quando se
evidenciou que Mogadíscio não estava disposto a desistir de sua reivindicação
irredentista sobre a NFD, o governo queniano aliou-se ao outro país que sofria
com a pretensão expansionista da Somália: a Etiópia. Em 1964, Kenyatta, na
posição de primeiro presidente do
Quênia, assinou um acordo de defesa mútua com o Imperador Haile Selassie da
Etiópia para conter a agressão somali. As duas nações renovaram este pacto em
1979 e em 1989. A Guerra de Ogaden (1977-1978) No
Quênia, Mogadíscio apoiou grupos armados locais para promover suas ambições
irredentistas. Contudo, na Etiópia, o que ocorreu foi uma guerra em larga
escala. Em 1977, o Exército Nacional da Somália invadiu a Etiópia numa
tentativa de anexar a região de Ogaden, habitada por comunidades somalis. A
invasão poderia ter atingido seu objetivo, se não tivesse ocorrido no contexto
da Guerra Fria. Na época, tanto a União Soviética (URSS) quanto os Estados
Unidos expandiam suas respectivas esferas de influência por todo o Chifre da
África, o que significou a observância à Etiópia e à Somália.Apesar de apoiar a
Somália antes da guerra, quando o conflito eclodiu, a URSS encorajou a Somália
e a Etiópia a encontrar uma solução negociada para a disputa — um movimento que
frustrou o então presidente da Somália, Siad Barre. Em resposta, em novembro de
1977, ele renunciou ao Tratado de Amizade entre a Somália e a URSS de 1974. Ele
também ordenou que todos os conselheiros soviéticos deixassem o país dentro de
sete dias, acabou com o uso soviético de instalações navais estratégicas no
Oceano Índico e quebrou relações diplomáticas com o principal aliado da URSS,
Cuba.Com isso, a URSS e seus aliados começaram a transferir pessoal e armas
para a Etiópia, efetivamente virando o equilíbrio da guerra em favor da
Etiópia. Barre esperava que sua iniciativa de romper os laços com a URSS
resultasse em maior apoio por parte dos EUA. Isto, entretanto, não aconteceu, e
Barre ordenou a retirada de suas forças de volta para a Somália em março de
1978. A derrota de Ogaden causou grande instabilidade política na Somália e
semeou o colapso do governo de Barre, e efetivamente do Estado somali, em 1991.
Conferências de paz na Somália O
Quênia e a Etiópia têm sido centrais para os esforços de construção de paz na
Somália. Ambos os países sediaram inúmeras conferências sobre a Somália durante
os anos 1990 e 2000 e intervieram militarmente no país. Na época, Adis Abeba e
Nairóbi trabalharam juntos para instigar a formação de um novo governo somali
que não representasse uma ameaça aos seus interesses políticos e de segurança
regionais. Em 2004, os esforços do Quênia, da Etiópia e de outras potências
regionais para trazer paz e estabilidade à Somália resultaram na formação do
Governo Federal de Transição (TFG) e na eleição de Abdullahi Yusuf como o novo
presidente da Somália. Este foi um resultado satisfatório tanto para o Quênia
quanto para a Etiópia. Yusuf, que fugiu para a Etiópia após participar de uma
tentativa fracassada de golpe contra Barre em 1979, tinha sido um aliado de
confiança de Adis Abeba durante décadas. Ele, que foi visto pela maioria da
população somali como um representante etíope, no entanto, não conseguiu unir a
nação. Como o conflito interno continuava no país, Yusuf anunciou sua demissão
em 2008. A saída de Yusuf da cena política somali, e a consequente perda de
controle do TFG sobre a maior parte do país, abriram caminho para a ascensão do
Sindicato dos Tribunais Islâmicos (Islamic Court Union —
ICU), uma organização jurídica e política islâmica estabelecida para acabar com
a ilegalidade e o conflito doméstico na Somália. A ICU conseguiu, em certa
medida, estabilizar o país após décadas de guerra, especialmente na Somália
Centro-Sul. Muitos somalis acolheram o governo da ICU porque estavam cansados
dos conflitos intermináveis e dos esforços internacionais mal sucedidos para
trazer a paz ao país, mas não apresentavam comprometimento ideológico com o
islamismo. Entretanto, a ascensão da ICU perturbou a Etiópia e, em dezembro de
2006, ela enviou suas tropas para a Somália para expulsá-la do poder. Mesmo que
as forças etíopes tenham conseguido derrotar a ICU, houve um aumento da
instabilidade na Somália e no seu entorno. O grupo armado al-Shabab aumentou
rapidamente sua influência na região, e a Somália entrou em outro período de
conflito. Jubbaland Em outubro de 2011, após
uma série de ataques transfronteiriços de combatentes do al-Shabab, baseados na
Somália, contra estrangeiros e trabalhadores humanitários no Quênia, Nairobi
enviou suas tropas para a região semi-autônoma do sul da Somália, no Jubbaland.
A incursão gerou incômodo não apenas em
Mogadíscio, mas também na Etiópia. Adis Abeba desconfiou da presença do Quênia
em Jubbaland, pois a intervenção militar poderia dar maior poder às comunidades
somalis em Ogaden — os mesmos que, há muito tempo, vem travando uma guerra
separatista contra Adis Abeba, através da Frente de Libertação Nacional de
Ogaden (ONLF). Além disso, o Quênia formou uma aliança com o xeique Ahmed
Mohamed, também conhecido como Madobe — um comandante da insurgência somali em
Ogaden. Madobe lutou contra o governo em Mogadíscio como aliado do al-Shabab
durante anos e se envolveu com combatentes da ONLF. Em 2012, a insurgência de
Madobe, apoiada pelas tropas quenianas, conseguiu expulsar o al-Shabab da
capital do Jubbaland, Kismayo, que também é uma cidade portuária estratégica.
Nos dois anos seguintes, Madobe presidiu a reconciliação dos grupos em
Jubbaland e em 2015, com o apoio do Quênia, foi eleito presidente da região
semi-autônoma. O crescente poder de Madobe em Jubbaland, e a aliança com o
Quênia, vulnerabilizou a posição etíope. Como resultado, ele passou a apoiar o
governo de Mogadíscio, revertendo sua política de décadas de suporte aos governos regionais contra o
centro para controlar seus poderes. Isto também marcou o fim da aliança
Quênia-Etiópia contra a ameaça irredentista pan-somali.As tensões entre o Quênia
e a Etiópia vieram à tona mais uma vez em agosto de 2019, durante as eleições
presidenciais de Jubbaland. O Quênia mais uma vez apoiou Madobe, enquanto a
Etiópia se aliou ao presidente da Somália, Farmaajo, que pressionava pela
expulsão de Madobe. Madobe ganhou as eleições, mas Mogadíscio se recusou a
aceitar o resultado.( Fonte A Referencia Noticias Internacional)